Na crĂ´nica anterior, intitulada As mentirinhas que os escritores contam, escarafunchei uns paradoxos entre o que alguns colegas de ofĂcio dizem e o que fazem depois, especialmente nessa postura esquisita de ostentações variadas nas redes sociais.
Mas pera lá. Em tempos de mentirinhas, entre os leitores a coisa também não fica atrás. Essa ideia veio num daqueles momentos em que o pensamento voa, quando estamos estáticos num engarrafamento ou mesmo cofiando a barba enquanto olhamos para o nada. São aquelas cenas em que miramos num ponto fixo e, quem vê de fora, pode acreditar claramente que estamos tecendo alta filosofia, quando na verdade ruminamos trocadilhos ou o refrão de músicas populares antigas que o ouvido pescou de soslaio.
Existe uma medição chamada Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. Em inglĂŞs, a sigla Ă© Pisa e, no Brasil, estamos pisados mesmo, pois o paĂs fica sempre entre os Ăşltimos. Isso me lembra um termo que ouvia bastante há um tempo, mas parece que foi esquecido: reformas de base.
No que se refere Ă leitura, a gente oscila entre o desânimo completo das estatĂsticas e as fagulhas de esperança aqui e ali. Mas como esta crĂ´nica tem pelo menos a intenção humorĂstica, vamos Ă s caricaturas.
Há uma linha de trabalho na área chamada “perfis de leitores” (nĂŁo confundir com leitores de perfil), em que a gente observa todo o contexto que cerca o momento da fruição literária. Se, por um lado, a intenção Ă© apontar para o maravilhamento da recriação de mundo provocado pelas pluralidades da experiĂŞncia artĂstica (bonito isso, vou anotar), por outro nĂŁo podemos ignorar aquilo que se situa entre o embromation, ou, como disse um professor de latim, a ars enrolandi, a arte de enrolar. Vamos a alguns:
- Quando reli Proust aos 9 anos… — ouço isso o tempo todo, especialmente de escritores falando sobre suas origens, mas nunca vi tal cena. Se alguĂ©m já viu e puder provar, me avise. Mas que nĂŁo seja “ah, eu fui essa pessoa”, pois te enquadro logo na mesma categoria. Nessa idade eu queria mesmo era ler Turma da MĂ´nica que, aliás, preciso reler.
- Li o livro sim, professora. É sobre… — Ă© sobre o resumo que vocĂŞ pegou fácil na internet, salafrário/a, porque nĂŁo sobrou tempo pra ler de tanto fazer dancinhas e congĂŞneres.
- Foto com livro aberto e legenda “devorando todo o Machado” — todo mundo sabe que a leitura durou o mesmo tempo que vocĂŞ levou para tirar a foto, pois chegou a nova temporada daquela sĂ©rie imperdĂvel que vai desaparecer mais rápido que a obra do Bruxo do Cosme Velho.
- Lá em casa temos muito o hábito da leitura, sabe? — pelo que me lembro, não tem estante nenhuma na sua casa, e foi você mesmo/a que torceu o nariz quando fui à festa de aniversário da sua criança e dei de presente um livro, ao passo que todo mundo só deu brinquedo. Aliás, hábito é escovar os dentes e tomar banho. Ler é algo que se faz conscientemente, ó pá.
- Valorizamos muito a literatura brasileira aqui na redação — peraĂ, seu jornalista literário, entĂŁo por que vocĂŞ baba tanto o ovo de qualquer publicação externa, dando espaço apenas aos nacionais das modinhas que o seu mesmo jornal ajuda a construir (para abandonar logo depois, vale lembrar), como se nĂŁo existisse literatura brasileira boa fora do raio de vosso umbigo?
- Leio o tempo todo porque isso me ressignifica na empresa — sim, vocĂŞ lĂŞ autoajuda corporativa nesses livros com palavrões no tĂtulo. Boa sorte lá. NĂŁo, nĂŁo quero emprestado, valeu!
- Adoro poesia, adooooro! — então por que não coooompra livros de poesiiiiia? É porque tem menos leeeetras?
- A leitura na escola me traumatizou para sempre — poxa, nesse caso é verdade mesmo.
O mundo às vezes progride, às vezes avança, feito cachorro. (Houve um tempo, por exemplo, em que inclusão digital era apenas o exame de próstata.) Então o lance é tentar entender esses parangolés, mas não nos esquecermos do seguinte: livro não expira, descarrega ou enguiça. É tecnologia de ponta, camaradas. E não estou mentindo.