🔓 A terapeuta que virou manequim de loja

Não sou mulher de um terapeuta só. Nos meus quarenta e cinco anos de vida, já deitei em quase dez divãs, já me encantei com diversas linhas
14/10/2020

No dia 23 de agosto deste ano, morreu uma pessoa muito importante para mim. Ainda que eu tenha me encontrado com ela quase toda semana durante seis anos, não sabia que ela vinha de uma família com predisposição ao câncer, que já tinha vencido a doença duas vezes e que, na sua última incidência, não teve chance de fazer nada. O tumor levou-a quinze dias depois de ser diagnosticado no estômago. Essa pessoa, como o título do texto não se constrange em apontar, foi minha terapeuta.

Não sou mulher de um terapeuta só. Nos meus quarenta e cinco anos de vida, já deitei em quase dez divãs, já me encantei com diversas linhas e só não fiz uma suruba entre lacanianos, freudianos e junguianos porque isso não é lá muito recomendado por eles. Mas entre tantos e tantas, a Sandra foi a mais importante para mim.

Quando bati na sua porta, aos trinta e poucos anos, eu não era escritora, nem roteirista, nem mãe. Eu era uma mulher insatisfeita no emprego de redatora, querendo muito ser escritora e digitando bastante para isso, mas com uma dificuldade intrigante em acabar os contos e o romance que então escrevia. Não sei se chegamos a concluir de onde vinha essa minha dificuldade. Sandra era psicanalista e psicanalistas não são muito afeitos a respostas monolíticas. Mas eu tenho lá minhas desconfianças. Fui criada numa colônia de descendentes de italianos, uma comunidade bastante machista e conservadora. Como ouvi certa vez de um parente próximo: mulheres não devem ler livros, devem ler revistas. Ler não, folhear. Se uma mulher não deve nem ler um livro, imagine escrever. Que disparate. E mesmo assim eu escrevia desde que me alfabetizei. Mas mostrar meus textos para alguém era outra história. Terminá-los era outra história. Porque em algum momento eu parava para ler o que estava no papel e pensava que tudo aquilo era uma bobagem, um avião de sulfite que só podia pleitear pouso em um destino: o lixo.

E então Sandra. Não sei bem o que eu e ela fizemos naquela sala da rua Jerônimo da Veiga mas comecei a terminar meus contos. Publiquei A teta racional e, nesse dia, senti que passei a existir por inteiro. O que não me livrava dos outros problemas de existir, como um relacionamento abusivo que eu estava vivendo, dentro da minha própria casa. Ao saber que eu me trancava no banheiro para não ser agredida e que, apesar de todos os meus pedidos, esse homem não arrumava as malas e ia embora, Sandra quebrou o protocolo: se a sua família não tirar ele de lá hoje, me avisa que eu vou.

Nem só de dramas superlativos vive uma terapia. Lá também consegui assumir e firmar, sem mais constrangimento, o meu hábito de usar sapatos até a sola furar, não por falta de dinheiro ou por desleixo, mas porque quando gosto de alguma coisa não consigo largar, configurando-me uma personagem de gibi, sempre com o mesmo visual e, naturalmente, cada vez mais puído. O que, na época, concretizava-se num par de botas estilo cowboy. O olho da sola encarava a Sandra durante a consulta e ríamos disso, num exercício não-verbal de aceitação das minhas esquisitices.

Quando tornei-me mãe e entrei num quadro depressivo, ela pediu que eu levasse a Eva à sessão. Apareci com minha filha no colo. Amamentei enquanto conversávamos de trabalho. Nunca entendi direito por que ela pediu que fôssemos juntas. Acho que queria observar a nossa interação, ver se estávamos bem enquanto dupla.

Lá pelo quinto ano de terapia, achei que o valor das consultas estava pesando demais e resolvi parar. Uns meses depois voltei. Uns meses depois parei de novo. Um ano depois… Retornei. Nessa época estava acabando meu segundo livro, o romance Tudo pode ser roubado. Durante uma sessão, sei lá por quê, resolvi contar o final do livro. Disse que a narradora ia até o brechó que era de sua amiga e pegava o que restou, a manequim de vitrine que elas apelidaram de Sandra. Minha terapeuta me interrompeu: como é o nome da manequim? Sandra, repeti. E só nessa hora me dei conta que havia batizado a mulher de plástico, relevante na narrativa, com o nome dela. Sandra pediu que eu prosseguisse, contando o que acontecia na história. Falei que a narradora botava o tronco da manequim debaixo do braço e ia embora do brechó. Começava a subir a Teodoro Sampaio carregando a Sandra. Mas começava a chover. O pedaço de plástico pesava. E quanto mais a narradora queria se livrar da manequim, mais aferrava-se a ela. Silêncio na sala. Depois de um tempo, Sandra alisou a calça e disse algo vago como: pois então. Sabíamos o que aquilo queria dizer, já vínhamos conversando a respeito. Estava na hora de eu me livrar de vez dela.

Em qualquer outra relação, se livrar teria um tom pejorativo. Não sei se usei esse termo, mas tenho certeza de que Sandra adoraria ouvir: me livrei de você. E me livrei tanto que passei a bater asas como feminista, publiquei meu segundo e terceiro livro, gastei mais alguns pares de botas até a sola, me separei e hoje vivo um casamento bonito. Quando publiquei Tudo pode ser roubado, deixei um exemplar com uma dedicatória cheia de gratidão na portaria do consultório. Não tenho certeza porque minha memória é vacilante, mas acho que foi o último contato que tivemos.

Giovana Madalosso

Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.

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