Virgílio de novo

Na tradução de "Bucólicas", Foed Castro Chamma valoriza a capacidade do poeta latino de construir uma imagem que pode ser continuamente revivida
O poeta Virgílio, autor de “Bucólicas”
01/02/2021

As Bucólicas ou Éclogas, de Virgílio, uma das três grandes obras do poeta latino, é outro desses livros que atravessam séculos, permeiam culturas e percorrem sucessão de línguas em tantas traduções. Em português, há diversas versões disponíveis. A que me chegou às mãos é a do poeta e tradutor Foed Castro Chamma. Publicação artesanal da Edições Latife, de 2002, com tiragem de apenas dez exemplares.

Além da tradução e do texto original latino, essa edição traz duas composições de Chamma: As Bucólicas e o paganismo, como introdução; e um apêndice, no qual o autor fala sobre sua tradução e sobre alguns aspectos específicos da obra de Virgílio.

Lemos, no apêndice, que Chamma se amparou, para sua própria versão das Bucólicas, em pelo menos duas traduções anteriores: a transposição em prosa do monge beneditino João Nunes de Andrade, publicada no Rio de Janeiro, em 1846; e a interpretação em alexandrinos do poeta francês Paul Valéry, publicada em 1955, no n° 32 da Nouvelle Revue Française.

Da “lúcida tradução” do monge beneditino, Chamma guardou a interpretação “da realidade campestre que o original em Latim delineia”. Guardou também dois alertas, que destacou no apêndice. O primeiro, sobre a “incorreção de muitos tradutores” da obra virgiliana, algo que o poeta certamente procurou evitar, inclusive por meio da comparação com outras versões. O segundo, que é uma citação de J. M. da C. e Silva, recomenda que “se a versão lhe despraz outra publiquem: só bem censura, quem melhor escreve”.

Tendo essas advertências em mente, Chamma não hesitou em cotejar seus decassílabos com a tradução de Valéry, “dando por satisfatório o meu ousado empenho”. Um processo comparativo que envolvia dupla tradução: sua versão do latim ao português; e a transposição, em alguma medida, dos versos do poeta francês para o vernáculo.

Chamma indica que essa confrontação foi fundamental para a definição dos termos de sua tradução, ou seja, em suas próprias palavras, “para o julgamento de um discurso que tem na imagem o reduto nuclear de uma realidade que a linguagem aprisiona e amplia, transformando o Tempo em objeto histórico do poema”.

Ao longo da mesma linha, Chamma tece sentidos elogios à maestria de Virgílio, valorizando sua capacidade de reunir beleza e concretude, de construir uma imagem que pode ser continuamente revivida e positivamente refeita em outra língua e em qualquer época: “O tempo prisioneiro da imagem é recriado na síntese que retrata uma ideia, como aquela do filho que, sentado à mesa, diviniza as núpcias da deusa” (Écloga IV, 63).

O tradutor brasileiro também acha espaço, no apêndice, para reflexões sobre a tradução, a poesia e a linguagem.

É nesse espaço de poucas páginas que Chamma arrisca uma descrição metafórica do processo tradutório, em termos que enredam inapelavelmente o tempo e uma realidade supostamente atemporal: “A tentativa de transposição da matéria original de uma língua para outra revive um tempo que se repete em seu fluxo intermitente, denotando a vitória do ser sobre o Tempo”.

É também nesse espaço exíguo que o tradutor aponta para a função da linguagem como substância que recobre — ou, quem sabe, demarca — a realidade, exercendo então o papel de ferramenta do Logos; enquanto o poeta, por sua vez, oficia de artesão do mito, de construtor de uma imagem atemporal intimamente unida à dinâmica da realidade.

Ao tradutor, a tarefa de decifrar, separar ou congregar, conforme o caso, mitos, imagens e a própria realidade disfarçada em linguagem.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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