🔓 Uma questão de interpretação

No desenrolar das leituras vamos dando nossas formas e feições ao que os nomes nos ocultam
Ilustração: Eduardo Mussi
02/07/2022

Esses minutos de café sem teoria, hoje, aqui, me fazem lembrar um sabor que não conheço. Está num dos poemas de Lezama Lima que eu e Adriana Lisboa traduzimos para a coletânea Dupla noite. Esse gosto único, literalmente intraduzível, de um “sorvete de mamey”. Então não haveria outro nome para essa fruta que soubéssemos ou nos soasse mais familiar? Mas não, não se trata de uma abóbora ou de um abricó. Mamey é o nome da fruta bem como de sua árvore, e sua terra nativa, Cuba. Há que viajar até Cuba para entrar na experiência sensível da palavra, e o misterioso disso, assim retido na correspondente estranheza do nome para os que circundam sem adentrar os saberes próprios da ilha, parece fiel ao cosmo poético nada óbvio de Lezama Lima. Uma questão de interpretação.

Mas experimentemos outro fruto, desta vez, sem nome. Aquele da perdição de Adão e Eva. Quem terá depreendido dali que esse fruto era uma maçã? Sendo tão mais provável que se tratasse de um voluptuosíssimo figo. E então, um dia, aquele fruto, de tantas cores e sabores possíveis em seu nome oculto, desocultou-se numa cordiforme maçã, que se reproduziu no nosso imaginário por séculos e séculos destelando-se das macieiras da literatura. A tentação da maçã, não do figo nem do pêssego nem de uvas intumescidas ou lúbricas romãs.

Ainda em plagas bíblicas, temos aquele peixe grande dentro do qual Jonas esteve entranhado por três dias, que um dia se moldou num corpo de baleia e assim deixou de ser na nossa imaginação um rei-dos-arenques, uma garoupa gigante ou qualquer outro ser do mar mais fantástico em sua monstruosidade do que uma baleia.

Outro caso bem conhecido e mais moderno de monstro sem nome: o inseto terrível em que se metamorfoseou Gregor Samsa. Vamos lá saber quem foi o primeiro a ver ali uma barata, num horror um tanto óbvio, em vez de um besouro voador ou qualquer outro inseto inevitavelmente assustador levado à escala humana. E eis que se proliferaram as baratas kafkianas. Mas alguém como Maria Manuel Lacerda, que assina a arte da capa do livro numa edição portuguesa de 2009, de repente volta a alargar nossos horizontes pondo ali ao lado da barata um percevejo, um escaravelho e imponentes besouros. Uma questão de interpretação. E no efetivo das nossas leituras vamos dando nossas formas e feições ao que os nomes nos ocultam. Há quem se afane em esgotar esse mistério, há quem goste de cultivá-lo. Esse gosto de algo que desconhecemos, esse outro saber, que até o sabor do café, aqui, agora, pode nos dar.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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