🔓 O que ainda se pode salvar

A tentativa de salvar alguns afetos em meio a uma guerra sem fim ou atravessando uma floresta em chamas
Ilustração: Carolina Vigna
19/06/2021

Há cinco anos o último tigre do zoológico de Gaza fez seu caminho de volta para a África do Sul, ele entre os quinze animais sobreviventes das guerras e da fome na região, com direito a pisar de novo sua terra natal levando no corpo os traumas de Gaza.

Faz três semanas grupos de palestinos aproveitaram a trégua entre o Hamas e Israel e saíram pelas ruas procurando os bichos feridos e famintos, gatos e cachorros desaparecidos depois de onze dias de bombardeios. Gente que saiu procurando seus afetos perdidos na guerra e que os foi encontrando cravados de estilhaços e com os olhos esbugalhados.

Não valem nada os jogos de imaginação sobre o que se pode salvar de uma casa em chamas. O cachorro que se salvou é agora para sempre um cachorro aterrorizado. O gato sobrevivente é como um trapo. Afetos cravados de traumas.

Em Mato Grosso, há quase um ano, o fogo tomou as aldeias da Terra Indígena Tereza Cristina. Dizem que as chamas atravessaram o rio, que foi preciso abrir o mato na mão e no desespero, as famílias tontas de fumaça. As casas que se salvaram ficaram em pé no meio da mata devastada. O homem que se salvou e conta a história é também ele, agora, uma floresta de quatis, macacos, araras e periquitos que já não há.

Está bem, não é que não valham nada os jogos de imaginação. Se houver quem consiga, que imagine como alguém se salva, como alguém se sente a salvo, depois de uma guerra ou num intervalo de trégua, com um corpo sacudido por tremores e os tímpanos estourados. Imagine o que se salva de um bicho que sobrevive a um cativeiro abandonado, o que se salvou de Laziz, o último tigre do zoológico de Gaza, que hoje caminha por um santuário, ao lado de outros tigres, salvos de outros zoológicos mundo afora.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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