🔓 Nossos oaristos

A prática milenar de algo que exige ao menos duas pessoas e nos torna mais humanos, mais afetuosos
Ilustração: Thiago Lucas
06/11/2021

A palavra sendo rara, o que ela nomeia também é? Vejamos o caso do oaristo. Será coisa rara de acontecer ou apenas acontece no privado, fazendo jus ao invulgar da palavra? Pode ser agora a primeira vez que alguém a pronuncia, embora vivendo sua acepção desde muito tempo. Pode ser também que um bem letrado a tenha na ponta da língua, sem até hoje lhe saber quase nada na prática. Então vamos à prática.

Como estamos de oaristos? Com que frequência vamos a eles? É uma pergunta bastante íntima, é verdade. Ninguém sai por aí alardeando seus oaristos. Ninguém convida publicamente o outro nem marca hora para um oaristo. Sabemos que há, que acontece, enquanto acontece e depois de acontecido. Talvez por isso o raro da palavra, por formar-se no decorrer de seu exercício, talvez por isso o escuro da palavra, começando e terminando noturnamente, como começa e termina noturnamente a palavra ósculo.

A prática do oaristo, como, aliás, também a do ósculo, requer pelo menos dois, podendo essa dupla ser de amantes ou amigos, irmãos de copo ou de trago. Qual seja a natureza dessa relação, o oaristo mede sua intensidade, seu alcance, sua consistência. A não ser em certos poemas ou situações extremas, não é algo que aconteça entre estranhos.

Como dizer? Num oaristo bate o coração inaparente de um casal ou de uma dupla. O que ali bombeia irriga todo o resto. É secreto, é cálido de significados pessoais em palavras de um glossário próprio, com aconchego de candeia num canto do ambiente. É o que fazem Penélope e Ulisses no final do vigésimo terceiro canto da Odisseia, à luz de tochas, talvez um dos mais célebres oaristos da literatura. É o que fazemos nós, em nossos melhores momentos. Mais um café, mais uns minutos, e quase entramos no recinto da palavra. Isso é bom. Pratiquemo-la.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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