🔓 Falsas florestas

O simulacro de folhas, galhos e raízes tenta trazer alguma trégua em meio à cidade de concreto
Ilustração: FP Rodrigues
21/05/2022

Era uma floresta de copas altas e troncos esguios cobrindo uma parede, do teto ao chão, no fundo de uma galeria de lojas. Uma fria floresta de papel, hoje penso, para fazer descansar um pouco os olhos dos que corriam de vitrine em vitrine, e que, para a criança que eu era na época, escancarava a existência de um outro lado. Qual senha secreta me faria entrar ali? Se eu caminhasse sem hesitar, abstraindo paredes, será que não podia de repente passar para o meio daquelas árvores? Porque não me descansava olhar uma floresta absurda no fundo de uma galeria de lojas. Criança que eu era, o outro lado me chamava. Então olhava, olhava infinitamente, tentando descobrir uma passagem.

Décadas depois, apareceu-me outra dessas falsas florestas no andar de um hospital, de frente para uma cafeteria. Ao contrário dos troncos altos da fria floresta de papel da infância, essa era de um rendado afogueado de folhas de árvores tacanhas, não mais aqueles troncos totêmicos da infância, agora troncos sinuosos de galhos como que descabelados flutuando no interior de um organismo todo envolto em veias. Era para alguém se sentar ali, um pouco à sombra alaranjada de um útero, com um bom café quente na mão, e ter onde perder os olhos. E foi ali que me sentei em estado de espera, perto da cúpula baixa de folhas meio amarelas meio vermelhas daquela floresta de atmosfera japonesa, o olhar parado numas pedras cobertas de musgo espelhadas num chão de mármore muito limpo.

Adulta, finalmente atendia ao propósito dos painéis de paisagens agradáveis, desses feitos para entorpecer encaixotados em consolo paliativo à falta de uma verdadeira trégua. Nada da voragem multitudinária de vida nessa falsa natureza, que, até uma criança desvendar o segredo da passagem, ninguém toca essas árvores nem pisa esse chão silvestre, ali estampados nas paredes só para desconfinar o nosso olhar, limpá-lo um pouco de muros, grades, limites. Nenhuma experiência, só relances de fuga, mas, passam os anos, borram-se os lugares da cidade já transformados em outros, desfazem-se velhas circunstâncias, ainda fica alguma coisa desses retalhos de floresta. Alguma coisa que chama.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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