🔓 Fábulas contra o medo

Quando as gatas não dão conta, um volume de histórias grande mas leve, bom de empunhar, serve para aniquilar insistentes invasoras asquerosas
Ilustração: Oliver Quinto
26/03/2022

O medo engorda na sombra, a gente sabe. A taquicardia de alguém no escuro é o batimento do medo acelerado gozando. Alguém petrificado é o paroxismo do medo numa fobia desabrida, a gente também sabe. Fobia de baratas, por exemplo. Uma vez, eu era jovem, pretendi desaparecer por uns dias e, uma vez sozinha, longe de casa, a pequena mala ainda por desfazer, topei com uma barata gigante, como se ali ela já me aguardasse. Ato contínuo, a mala intacta, noite alta, tomei a estrada de volta. Que futuro insuportável se soubesse que dali a uns vinte anos eu toparia com baratas diariamente.

Agora averiguo cada ambiente por suas orlas, cantos, dobras, perscruto a sala do teto ao rodapé, nas reentrâncias das cortinas, no vão das portas, tenho já a indesejada se formando atrás dos meus olhos. Pois não foi que uma noite dessas ela se meteu por uma fresta do rodapé da sala e tive o arrepio de ouvi-la se arrastar ali por dentro num frufrulhar de papel crepom, o terror já elaborando a pergunta fatal se não haveria ali colada às paredes toda uma comunidade delas. No meio desse pesadelo, agradeço a existência das minhas gatas e suas vigílias de madrugada. Nas suas garras, e apenas nelas, as malditas tornam-se finalmente vulneráveis, emborcadas, esperneando.

Ainda ao topar com as asquerosas me desconcentro, levo para o lado pessoal, afinal por que diabos outra noite uma delas apareceu entre os papéis da minha mesa? Tão insolente que levantou voo mal ensaiei desferir nela uma cadernada, era ágil, adolescente, delgada, a danada, e provocava que me provocava. Acendi todas as luzes do salão, assumindo a caçada, já que a maldita voava de cá para lá fora do alcance das gatas. Parecia ciente da abertura dos jogos mortais e passava numa rasante, arremetia, depois ia alto se encafurnar atrás de um quadro. Ficamos assim por uma hora, a barata sobrevoando a biblioteca, me enriquecendo a raiva do tempo desperdiçado nessa pangalhada tragicômica, até que ela vem se esconder atrás das lâminas da persiana. Eu me aprumo, a hora é agora, pego o primeiro livro à mão que há por perto, livro bom de empunhar, grande mas leve. Vou até a janela sem rodeios, não vejo a asquerosa, mas sei que está ali atrás, meu gesto é rápido, esmagador, ela cai para o chão, não mexe uma pata. Agora as histórias maravilhosas de Andersen têm lugar cativo fora das estantes, para sempre. Edição ilustrada, compilação de Russell Ash e Bernard Higton. Recomendo.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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