🔓 Alucinando

Será que a cronista está vendo coisas, pensando-se entre ocorrências, se não fantásticas, a um passo do fantástico, se não loucas, a um passo da loucura?
Ilustração: Denise Gonçalves
03/07/2021

Seis da manhã e ainda está escuro lá fora, o vento estapeia os vidros das janelas, é a noite de ontem que se alarga. Posso jurar que uma madrugada dessas ouvi um galo na avenida e uma mulher num karaokê da rua de cima que cantava La vie en rose. Também vi um homem sapateando sem sapatos, era como se estivesse enxotando seus fantasmas e ao mesmo tempo se fazendo alguém, finalmente alguém, com dois pés que estalam.

Será que o cronista, contaminado por sua época, já está alucinando e nem percebe? Vendo coisas, ouvindo coisas, pensando-se entre ocorrências, se não fantásticas, a um passo do fantástico, se não loucas, a um passo da loucura.

O corpo dói, é uma dor que irradia do pescoço para o ombro, do ombro para as costas, e faz o corpo se curvar um pouco sob o peso dos seus mortos. E esse vento que agora esbofeteia os vidros? Irá finalmente arrebentá-los? E então o quê? Você ainda tem medo de quê? A morte por todos os lados, com meio milhão de caras, e você no olho do abismo ainda tem medo de quê?

Uma cronista louca de lúcida, lá para o fim do século passado, já lançava a ideia: “vamo brincá que a peste passô?”, “vamo brincá de pinel?”, “vamo brincá de poesia de amor?”. Quem se habilita? Se não era simples essa alucinação boa nos tempos da obscena senhora Hilda, imagine agora. Não é bem mais simples pender para o desânimo? Bem mais razoável, bem mais coerente, com essas manhãs de inverno que não se abrem, não clareiam, não amanhecem, não importa o quanto os ponteiros trabalhem.

Quem se habilita ao extremo oposto do desgosto? E com que forças? Quem ainda apruma as costas, quem enxota o mal dos ossos, quem ainda empresta chama e pende para a vida, mesmo uma vida descabida, canto de cisne, absurda? Se é para queimar, que seja com gosto, que não seja morno. Se é para alucinar, que seja alto, farto, largo como a noite lá fora, mas excepcionalmente, redondamente maravilhoso.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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