Está na canção de Daniel Camino Diez Canseco em ritmo de cumbia, bastante famosa na América Latina, está no Dicionário de lugares imaginários de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, está na fantasia de leitores do mundo todo, a Macondo sonhada por Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão.
No Brasil, o livro chega este ano à sua 132ª edição pela Record, em tradução de Eric Nepomuceno. Em dezembro, estreia a adaptação do romance para uma série da Netflix. Esse “terremoto literário”, segundo testemunhas, rebentou e foi repercutindo mundo afora logo após a publicação do livro na Colômbia, em 1967. Dizem que o próprio Gabo, enquanto o escrevia, tinha consciência de estar criando uma obra-prima.
Mas vamos ao que existiu pouco antes do grande fenômeno, e que, de maneira imperceptivelmente cotidiana, o propiciou. Em 1965, morando com Mercedes Barcha e seus dois filhos pequenos na Cidade do México, Gabo assume o risco de parar de trabalhar por um ano. A essa altura, aos 38 anos, já é um jornalista renomado, mas ainda está nos seus primeiros livros de ficção. É aí que ele conta com o apoio indispensável da mulher.
Os amigos dessa época se lembram. Mercedes fazia empréstimos, pedia ajuda a vizinhos, mantinha de pé casa e família, parceira da confiança de Gabo, que se fechava para escrever o dia inteiro. Esses amigos que se lembram, que acompanharam o livro em tempo real, também foram de especial importância. Eram os leitores do livro antes do livro, que iam avançando os capítulos enquanto eram escritos, vendo Macondo crescer antes de ganhar o mundo, entre eles Jomí García Ascot e María Luisa Elío, a quem Cem anos de solidão é dedicado, e Emmanuel Carballo, que levava todo sábado para casa o que o amigo havia escrito durante a semana.
Quando Gabo termina o romance e consegue enviar o manuscrito por correio à editora (faltava-lhe dinheiro até para isso), com o carro penhorado, dívidas com o açougueiro, aluguel atrasado, Mercedes solta aquela frase antológica: “Agora só falta esse romance ser uma merda”. Com que gosto iriam rir disso, logo ali adiante. Mas, ainda no meio dos maus bocados, quando José Arcadio Buendía, Ursula Iguarán e toda a árvore genealógica da fantasia existiam só em manuscrito, era a confiança de alguns em torno desse livro que sustentava toda a sua possibilidade de ser.
Santiago Mutis, filho do poeta colombiano Álvaro Mutis, que também conviveu com Gabo nesse período mexicano, comenta numa entrevia a Silvana Paternostro (no livro Solidão e companhia, editora Planeta) que o escritor teve “a maior sorte do mundo com amigos e pensões”. De fato, Gabo teve muita sorte, teve confiança própria e alheia, e Mercedes a seu lado quando só o que havia era o bater de uma velha máquina de escrever na sala de estar e ainda nenhum terremoto, nenhum grande fenômeno.