Estranhas ocorrências

Quando ninguém mais se importa com nada, os cães ladram na madrugada. Os cães se importam
10/10/2020

Coisas estranhas têm acontecido à noite enquanto escrevo. Adolescentes em férias antecipadas montam acampamento debaixo da goiabeira da esquina. Três homens conversam sentados em torno a uma mesa, numa sala com luz de lâmpada fluorescente, no oitavo andar de um prédio fantasma. Um show de sucessos de Roberto Carlos sobe do bar a céu aberto na avenida, de gente que deu de usar essa parte do bairro como câmara de ecos das suas bebedeiras num mundo paralelo pós-pandemia. Coisas estranhas como se nada fossem.

Outra noite, durante um daqueles pronunciamentos oficiais que provocam gritaria nas janelas, dois vizinhos se xingavam à distância quando uma mulher, farta daquilo, interveio arrematando o duelo com uma frase. Uma única frase tão imediatamente eficaz que todas as coisas mais estranhas e descaradamente absurdas pareciam de repente explicadas ali. “Ninguém se importa!” — é o que a mulher grita. “Ninguém se importa!”, e, como mágica, estava acabada a guerra dos vizinhos, nessa franca admissão de descaso.

Mas, no meio da madrugada, quando dormem todos os que não se importam, quando não há uma alma viva na avenida, um cão late. Outro cão perto dali responde, depois outro, um pouco mais longe, e outro, e assim vai se adensando um escuro agudo de ganidos que é como o protesto que nos falta, mas, aos cães, não. Então, mais uma vez, tudo dorme. Por pelo menos uma hora antes do primeiro ônibus, tudo dorme. Uns minutos de latidos e ganidos, escuro dentro de escuro, só isso já vale o turno da madrugada. Os cães se importam.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

Leia também

Carlos Castelo
São Paulo – SP
Se existe magia do Natal, ela está escondida entre a décima segunda prateleira de panetones e aquele Papai Noel da 25 de Março
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte - MG
Quando diminutivos, alguns até ridículos, aliviam a apreensão e tornam a vida num hospital um pouco mais leve
Ricardo Ramos Filho
São Paulo - SP
Das lembranças da ditadura sanguinária brasileira, restaram uma linda amizade e a revolta contra torturadores impunes
Rascunho
Curitiba - PR
Leia em PDF a edição 296 (dezembro/24), com destaque para o Paio Literário com Paula Fábrio e Rafael Gallo e o Inquérito com Francesca Cricelli. Arte da capa: Tereza Yamashita
Rascunho