A coragem de não gostar

As opiniões divergentes geram conflitos diversos, e é no embate democrático que nossa voz se fortalece
Ilustração: FP Rodrigues
03/03/2024

Sempre que termina o Carnaval, que no Brasil dura seis meses, faço uma espécie de celebração ao silêncio. Ufa, que alívio. Aquela aglomeração de blocos nas ruas me desorienta. Não me refiro ao Carnaval da avenida, que é um espaço reservado especialmente para quem gosta de desfilar e assistir. É lindo o espetáculo. Só que o tormento da excessiva turma dos blocos me deixa mal. Não se consegue andar, tudo parado, aquelas marchinhas seculares e chatérrimas. Ok, vou ser apedrejada. Esse é o tema da crônica. Temos hoje coragem de não gostar do que é popular?

Não me refiro a nenhuma condenação de espécie alguma, sequer julgamento, quem sou eu. Nada disso. Apenas de gostar de um lazer e não de outro. De gostar de praia de não de piscina e vice-versa; de não gostar de fazenda e adorar férias urbanas, não sei. Apenas lançando opções que podem gerar conflito até entre amigos. Digo isso porque minha filha me condenou: “Você não pode dizer que não gosta de Carnaval. Fica mal, não soa bem”.

Aí pensei: por que não posso ou não devo dizer? Temos, sim, compromisso ético com nossas posições, óbvio. O que nem sempre ocorre… O advento das eleições deixou claro que a falta de senso mora na nossa vizinhança e quem de nós não perdeu amigos ou familiares recentemente? Vocês sabem do que estou falando… As opiniões divergentes geram conflitos diversos, e é no embate democrático que nossa voz se fortalece. Nas questões triviais, contudo, eu me reservo o direito de não ser questionada. Que ninguém me obrigue a achar blocos de rua algo divertido. Minha opinião: detesto.

Querem outra polêmica que não deveria existir? Gostar de montanha-russa. Não suporto a ideia de me dependurar ali e achar legal brincar de cair, ficar tonta e labiríntica em nome do que para a maioria é diversão. Para mim não é. Aí outro dia uma amiga cismou de me obrigar a tentar ir porque, segundo ela, não posso gostar do que nunca fiz. Eu já fui, sim, em algumas pequenas aventuras. Foi o suficiente para nunca mais. Detesto.

Mais um exemplo: barcos e, especialmente, navios. Se alguém um dia me vir em um cruzeiro, podem pedir para eu descer e me levarem diretamente para uma clínica de memória ou devo ter enlouquecido. Nada me causa mais náusea do que a ideia de estar em um navio dia e noite. Detesto. E nenhum “glamour” que venha a ter em lugares que passeiam no mar vai me convencer de que aquela ideia pavorosa é lazer ou diversão.

Pasmem: essa questão já foi tema de sérias desavenças entre pessoas muito próximas a mim. Devo me calar, então, para manter a paz?

Quando a gente dispara gostos que deveriam ser apenas isto — gostos —, muitas vezes somos confrontados com a turma da patrulha. Não pode. Por que não pode? Não sou obrigada a gostar de amarelo. Detesto amarelo, aliás.

Diante do massacre que se tornou a rede social, estas opiniões prosaicas se tornaram inviáveis. Temos que contornar nossa forma de viver ou pensar para não ferir suscetibilidades. Isso é muito chato.

Claro que a lei é “os incomodados que se retirem”. Sim, vou acatar essa lei soberana e tentar fazer valer o que não tenho conseguido fazer: alugar uma casa no alto de uma montanha para esperar os blocos passarem. Quanto às montanhas russas e navios, me poupem e me deixem em paz para eu detestar em paz.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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