Mil e uma noites (1)

As diferentes opções e estratégias adotadas por tradutores para verter o clássico árabe para diversas línguas
Ilustração de Aladdin para a edição francesa traduzida por Antonie Galland
01/07/2022

A história da composição e da tradução de As mil e uma noites é toda uma novela, com raízes que se perdem no passado e na encruzilhada das línguas. Jorge Luis Borges, enfocando a tradução do clássico árabe, produziu um ensaio memorável sobre o tema: Os tradutores das 1001 noites, incluído em seu livro História da eternidade.

Borges se concentra, em especial, nas traduções de Jean Antoine Galland (para o francês, 1717), Edward Lane (para o inglês, 1839), Richard Francis Burton (para o inglês, 1872), Joseph-Charles Mardrus (para o francês, 1906) e Enno Littmann (para o alemão, 1928).

As traduções de As mil e uma noites, segundo a avaliação de Borges, funcionam como um bom apanhado das amplas possibilidades de práticas de tradução. Vemos aí as diferentes opções e estratégias adotadas por distintos tradutores, seja por razões editoriais ou ideológicas, seja ante os limites impostos pela própria formação intelectual do profissional que se encarrega da tarefa. Assim, temos, entre outros, exemplos de traduções (supostamente) literais e livres; de versões abreviadas ou expurgadas; de versões incrementadas e alongadas; e do uso de notas para explicar o que se diz (ou não se pode ou não se quer dizer) no texto.

Sobre a tradução em geral, e sobre a eterna dicotomia entre livre e literal, Borges sentencia: “Ambas são menos importantes do que o tradutor e seus hábitos literários. Traduzir o espírito é uma intenção tão enorme e tão fantasmagórica que bem pode tornar-se inofensiva; traduzir a letra, uma precisão tão extravagante que não há perigo de que a ensaiem”.

Nessa primeira abordagem ao texto de Borges, passo a comentar as traduções por ele consideradas como mais “livres”. Antes, uma ressalva: a crítica do escritor argentino descarta a existência de uma tradução verdadeiramente “literal” do texto árabe, em razão de diversas modificações, acréscimos, interpolações e expurgos. Segunda ressalva: vemos aqui traduções de um texto que não tem propriamente um “original” consolidado, em razão de sua origem obscura, da existência de distintas compilações e de uma certa confusão de línguas que estiveram em sua gênese.

De todo modo, Borges aponta as duas traduções para o francês, de Galland e Mardrus, como as mais livres.

No caso de Mardrus, a categorização como “livre” é paradoxal, por ter sido sua tradução saudada justamente como a mais “literal” — característica, aliás, destacada no subtítulo — Versão literal e completa do texto árabe — e inspirada pela qualificação Livro das mil noites e uma noite [que seria a tradução literal, embora rebarbativa, do título original árabe].

Borges aponta uma série de operações de Mardrus sobre o texto “original”, incluindo interpolações e complementações. A avaliação borgiana, contudo, é positiva: “Cabe dizer que Mardrus não traduz as palavras, mas as representações do livro: liberdade negada aos tradutores, mas tolerada nos desenhistas […] Sua infidelidade, sua infidelidade criadora e feliz, é o que nos deve importar”.

No caso de Galland, o veredicto de Borges é implacável: “…ignorava toda precisão literal, […] [invocando] um manuscrito invisível”.

Segundo o autor argentino, algumas das principais características da tradução de Galland são o encobrimento das partes obscenas do “original” e a estratégia de “domesticar” o texto árabe, para que não destoasse do ambiente que se respirava na Paris da época.

Ainda assim, a tradução de Galland, apresentada por Borges como a pioneira para línguas europeias, foi vertida a diversos idiomas, em traduções indiretas, inclusive para o próprio árabe… o que fez dela um novo “original”.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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