Inteligência artificiosa

Para a tradução literária, a máquina ainda parece uma ficção distante
31/08/2018

A tradução automática, por máquina/computador, é uma realidade, claro. Funciona razoavelmente bem para textos técnicos, ainda que demande ajustes e uma boa revisão. Talvez também possa servir como versão de apoio na tradução de escritos algo mais complexos.

Já escrevi outras vezes, neste mesmo espaço, sobre a tradução por computador. Mas como a tecnologia evolui rapidamente, é sempre importante atualizar os conhecimentos e a análise sobre a matéria.

Resolvi fazer testes com algumas máquinas de tradução disponíveis na internet. Escolhi um texto curto do capítulo XXXII de Dom Casmurro. O trecho original é o seguinte: “Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas”.

Usei como base de comparação uma tradução do mesmo trecho para o inglês, realizada pela americana Helen Caldwell: “I had remembered the definition that José Dias had given of them, ‘gypsy’s eyes, oblique and sly’. I did not know what ‘oblique’ was, but I knew ‘sly’, and I wanted to see if they could be called that. Capitu let me look at her, and examine them. She only asked what it was, and if I had never seen them before. I found nothing extraordinary in them; their color and gentleness were my old friends”.

Usei, como máquinas de tradução, alguns serviços online conhecidos, como o Bing, o tradutor do Google, o Reverso e o Worldlingo. As traduções automáticas foram todas decepcionantes. Nenhuma delas sequer se aproximou do texto inglês usado como base de comparação. Reproduzo, a seguir, um dos textos obtidos por tradução automática, talvez o menos pior: “I had remembered the definition that Joseph Dias had given them, ‘eyes of gypsy oblique and disguised’. I didn’t know what was oblique, but disguised knew, and I wanted to see if they could call it that. Capitu let himself stare and examine. I just wondered what it was if I never saw them. I found nothing extraordinary; The color and the sweetness were known to me” (versão Bing).

Lembrei-me do Pierre Menard borgiano e ensaiei uma suposição, um tanto absurda. Que Helen Caldwell tivesse feito a tradução perfeita, que tivesse reescrito Dom Casmurro como Machado o faria se escrevesse em inglês. Assim, seria também possível comparar, com o original machadiano, a tradução para o português do “original” inglês.

Mesmo que minha suposição, absurda, estivesse milagrosamente certa, a máquina de tradução certamente torceria todo o texto, no sentido inverso. Tinha tudo para dar errado.

Assim mesmo, retraduzi para o português o texto de Helen Caldwell, usando novamente as máquinas disponíveis na internet. O resultado foi mais animador, embora muito longe do aceitável, em sua melhor versão: “Eu tinha lembrado a definição que José dias tinha dado deles, ‘olhos ciganos, oblíquos e manhosos’. Eu não sabia o que ‘oblíquo’ era, mas eu sabia ‘Sly’, e eu queria ver se eles poderiam ser chamados assim. Capitu deixe-me olhar para ela, e examiná-los. Ela só perguntou o que era, e se eu nunca tinha visto antes. Eu não encontrei nada de extraordinário neles; Sua cor e gentileza eram meus velhos amigos” (versão Bing).

Nos dois casos, a comparação com o texto “original” evidencia as claras limitações da tradução automática. Isso tudo em apenas um trecho de poucas linhas. A confusão que se poderia gerar na tradução do texto completo de Dom Casmurro seria naturalmente enorme. Para a tradução literária, a máquina ainda parece uma ficção distante.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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