Planejamento e prazer na escrita

Prazer, conhecimento, liberdade, êxito da realização: eis o que podemos razoavelmente esperar quando se pensa antes de escrever
Ilustração: Miguel Rodrigues
01/07/2020

1.
Desde já: a palavra “planejamento” é maldita, e cria problemas logo que enunciada. Escritores há que detestam a ideia de planejar um romance — usarei essa palavra genérica, “romance” —; outros, que não conseguem começar a escrevê-lo sem que esteja por inteiro num esboço gráfico ou discursivo. Muita discussão — e muito insulto, como é da moda. O desconcerto, sob certo ângulo mal-humorado, poderia ser atribuído a duas perspectivas de mundo classificadas como pré e pós-iluminista, ou, num plano mais brando, romântico-idealista e moderna, com todas as ressalvas possíveis a qualquer equação toscamente binária como esta. O fato é que o assunto segue apartando a grei, e é impossível ignorá-lo quando se pretende refletir sem paixões sobre os temas da técnica literária.

2.
Os negacionistas do planejamento são pessoas sensíveis, articuladas e conscientes do que dizem. Seus motivos são respeitáveis. O planejamento resultaria numa obra “engessada”, mas, o principal, poderia retirar do ficcionista o prazer da escritura e da “descoberta”. Tanto o aristocrático talento quanto o mítico dom supririam qualquer necessidade de planejar. O início pela tela em branco representaria a ilimitada liberdade, acima das possíveis indicações técnicas, bem como a reiteração da força criativa atinente a essa liberdade, tudo conduzindo a uma obra literária baseada apenas na envergadura do instinto.

3.
A melhor preliminar para a flexão dessa pendência será dizer uma obviedade: importa, na obra literária, o livro acabado, exposto na livraria ou circulando on-line. Ao leitor habitual interessa a qualidade estética e humana do livro que vai adquirir. Assim, a discussão sobre planejamento ou não-planejamento é coisa completamente adjetiva, e mais: restrita ao pequeno mundo das pessoas que escrevem e dialogam entre si. A quem lê o romance Madame Bovary numa cadeira de praia, será apenas uma divertida curiosidade saber se Flaubert o planejou — a propósito, planejou-o ao detalhe, conforme os originais que podem ser consultados na internet, o mesmo acontecendo com J. K. Rowling e seu Harry Potter. E, a propósito, nenhum leitor reclamou de qualquer engessamento nessas obras.

4.
Varridas as aparas, pode-se aceitar que o ficcionista decida substituir, com merecido alívio e ganho, o pesado conceito de “planejamento” da obra literária pela ideia menos problemática de “conhecimento prévio do que se vai escrever”, tal como o diretor de cinema precisa ter ciência precedente do filme, cena a cena, em pormenor: há muito dinheiro em jogo, aluguel de estúdio, pagamento de leis trabalhistas, custos de produção de cenários, figurinos. Tal como acontecia com o arquiteto da catedral gótica, que a planejava, mas que era também seu engenheiro e mestre de obras. Um passo em falso em seu projeto, e não se perdia apenas o dinheiro do bispado, mas todo o edifício poderia desabar na cabeça do infeliz artífice. Na obra literária, a imprevisão pode ser menos dramática, mas sempre depressiva. Simples assim. O conhecimento prévio não será relevante para o poema curto ou para o conto-flash atual, instantâneo, mas, sim, para a novela e, mais ainda, para o romance em sentido estrito. Há pessoas, excepcionalmente vocacionadas, que não necessitam levar ao papel qualquer esboço da narrativa. Têm-no na cabeça, em especial se for uma novela com as dimensões e a estrita ambição de O velho e o mar ou Bartleby, o escriturário. Mas é impossível que todos sejam tão vocacionados a ponto de se lançarem a escrever um Guerra e paz ou O linguado sem qualquer previsão.

5.
O conhecimento prévio do que se vai escrever é ultrapassar a fase da ideia difusa (uma geleia-geral) ou explosiva (um big-bang epifânico), para dar o passo adiante; essa operação resulta em que a potência do sonho ou da epifania se transforma em ato no texto. No romance, enfim. O conhecimento prévio da narrativa implica estabelecer suas linhas gerais e particulares, tema de futura coluna, em que a pedra de toque são: a) a consistência da personagem; b) o conceito sistêmico do enredo.

6.
A consistência da personagem: a personagem é o epicentro da história, e nunca seria demasiado repetir o que aqui foi dito na coluna de junho. Se funcionar bem, se o leitor acreditar nela desde o primeiro parágrafo em que aparece, o romance — intimista, de formação, policial, humorístico, ao gosto de quem o escrever — surgirá como consequência. Conhecer de antemão a personagem, além de significar uma apurada e intransitiva vivência da sensibilidade, representará meio caminho do conhecimento anterior do romance. Ao pensarmos detidamente na personagem, ela mostrará aos poucos sua complexidade interna, e, assim, mais escolhas oferecerá para uma boa previsão da história, justificando os episódios que vier a provocar.

7.
O conceito sistêmico do enredo: a natureza, por exemplo, é um sistema, já nos comprovou von Humboldt. Não haverá qualquer perda em comparar o enredo a um sistema. Isto quer dizer que todos os elementos que o compõem são interligados. Dessa forma, será possível estabelecer antecipadamente a relação de causa e efeito entre os diferentes episódios. O leitor espera que um episódio seja gerado por outro, que, por sua vez, será causa de outro, numa sucessão não necessariamente cronológica: o episódio 7 pode ter sua causa do episódio 3. Essa coesão interna, mesmo que a forma seja anárquica, fragmentada, leva o leitor a constatar que está diante de uma estrutura harmônica, que respeita sua inteligência, passo necessário para que “entenda” a história e se deixe levar por ela. Esse mesmo leitor terá, no enredo, as respostas às perguntas que o próprio enredo lança. E só o sistema garante isso.

8.
Resta pensar no prazer, essa busca tão exasperada e atual. Alguns acham que saber com antecipação todo o enredo é um desbarato do prazer da escrita. Muito ao contrário: o autor experimenta um exaltado prazer quando lhe assoma, toda fresca e nova, a ideia; ao organizá-la, lhe é assegurado o prazer intelectivo, feito de pequenas iluminações e, por fim, o autor saboreia intensa fruição sensorial quando a executa, palavra por palavra, frase por frase, ouvindo interiormente seus ritmos e como se unem umas às outras. Ao lado disso, o planejamento evita a infelicidade diária do sentar-se à frente do computador sem saber o que se vai escrever. Esse dissabor é substituído por um movimento bem mais instigante, de máxima autonomia e, no entanto, domesticável: “como vou escrever isso?”. O planejamento pode prever que Maria, em dado episódio, e raivosa, vai de São Paulo ao Rio e, lá, rompe uma relação. O autor tem o prazer garantido de imaginar que, mais adiante, terá de decidir se Maria irá de avião, de carro, de ônibus ou de carona, bem como resolver se esse rompimento será num quarto de motel, num restaurante ou numa lancha, e se será à bofetada ou por uma trabalhosa conversa cheia de esgotantes ironias.

9.
Prazer, conhecimento, liberdade, êxito da realização: eis o que podemos razoavelmente esperar quando se pensa antes de escrever. A escrita do romance que parte da tela em branco, do voo cego, poderá ser agradável nos momentos iniciais, mas a tendência é que, em boa parte das vezes, essa escrita ingresse num túnel do terror, acarretando tantas reescritas e que a levem a ser abandonada pelo autor — ou pelo leitor, se concluída e publicada.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho