Tartarugas

Ao cair na rua e bater a cabeça, o pai — cujo fim vendo sendo construído desde sempre — recebe ajuda de um filho do qual nunca foi próximo
Ilustração: Guilherme Paixão
01/05/2022

A fenda na camisola descortina o sexo do pai. No átimo de tempo que presencia a nossa mútua vergonha, a mão direita arrasta o tecido frágil sobre as pernas. Esconde-se um antigo e indestrutível silêncio. Da boca de poucos e podres dentes sai apenas um silvo incompreensível — passarinho a agonizar após a pedrada certeira. Não entendo os grunhidos. Desnecessária comunicação que nunca existiu. Lá fora a chuva constante segue a tilintar na calha.

De longe parece bonito. As linhas retas sobressaem na paisagem da pequena cidade. O arquiteto projetou com mestria os espaços vazios, a leveza do imenso pé-direito. Um lago em frente transmite uma paz artificial. Deixo o carro no estacionamento e caminho sob a chuva até a entrada B. Uma pequena fila é a indicação de que terei de pegar uma senha e esperar. O pai chegou ao hospital há quatro dias após cair na rua e bater a cabeça. A nuca desenhou um risco vermelho na calçada. Há algum tempo, caminha feito um animal cansado, sem rumo, sem qualquer perspectiva de encontrar o dono. A erosão do corpo — terra sem viço, castigada pelos excessos mundanos e etílicos — foi abrupta. Tornou-se infértil, nada vinga ali, a plantação é apenas uma ausência permanente. De repente, transformou-se num homem triste, cambaio a arrastar um corpo frágil, a transbordar pecados. Já tornaram-se comuns as quedas. Eu e meu sobrinho, de tempos em tempos, somos transformados em pequenas gruas a erguer uma delicada árvore genealógica.

Meu avô paterno, espécie de patriarca de um reino inexistente, foi encontrado morto ainda jovem caído numa encosta. Há muito tempo, carregamos no lombo de uma garrafa de cachaça a maldição doméstica.

As enfermeiras conversam animadamente sobre um assunto banal: a traição de algum famoso da tevê. Não identifico o personagem, mas sorrio antes de anunciar o nome do pai. “Vim buscá-lo”, digo como se solicitasse uma encomenda perdida em algum depósito. Uma das enfermeiras manuseia poucas folhas de papel numa prancheta. “Ele já está de alta”, diz sem me olhar. Penso em dizer “eu sei, por isso estou aqui”. Mas apenas balanço a cabeça em um sinal que tenta ser simpático. Estou cansado e evito conversar. Vou ao quarto número setenta e quatro. Quando entro, vejo o sexo flácido do pai.

Estou com minha filha de cinco anos quando meu sobrinho liga: “Encontraram o vô caído lá perto da rodoviária”. Não tenho forças para percorrer quase 30 quilômetros e resgatar o homem cujo fim vem sendo construído desde sempre. Antes, muito antes, eram socos, pontapés e ofensas contra a mãe e os três filhos — eu, infelizmente, era um deles. A esposa, minha mãe, morreu. A filha, minha irmã, morreu. O filho, meu irmão, toma dez comprimidos diários para várias doenças. Ele, o pai, está morrendo. Eu, o outro filho, sou abstêmio há vinte e dois anos. Ao que parece, se tiver alguma sorte, serei o vencedor de nosso jogo de resta um familiar. Um vencedor sem glórias.

“Vai lá e cuida disso, por favor”, digo num misto de raiva e agonia. Ele vai e cuida da melhor maneira possível. Uma ambulância leva o avô — meu pai — para o hospital de linhas retas a despontar diante do lago.

Estou escorado, o corpo meio de lado, no batente da porta quando uma enfermeira aponta a cabeça no final do corredor e grita “trouxe roupa pra levar ele?”. Imagino que “ele” seja meu pai e que poderia ter dito “levá-lo”. Ameaço um “ele chegou aqui pelado?”, mas evito o embate um tanto grosseiro. Apenas balanço a cabeça em resposta negativa — o meu silêncio é sinal de que a batalha está perdida há muito tempo. Na cama, o pai grunhe algo como “a roupa está ali” e meneia o queixo em direção a um armário. Encontro uma camisa da seleção brasileira (que um dia fora minha) e uma calça de moletom com vários furos. Um chinelo de dedos está no chão. Penso em perguntar “não estava usando cueca, pai?”. Mas seria algo um tanto constrangedor. Na cama ao lado, um velho banguela — a boca a mastigar o vazio — tenta levantar a cabeça: lembra uma tartaruga estropiada.

Por coincidência, estou lendo um livro cujo protagonista busca se livrar de uma tartaruga. O bicho fora deixado no apartamento que ele, o protagonista, alugara. Agora, troca estranhos e-mails com a senhoria: uma mulher enigmática que passa instruções de quem poderia ficar com a tartaruga. Depois de muitas tentativas, o protagonista tem uma estranha surpresa também num hospital. É um belo romance: não sobre tartarugas, mas sobre nós, os seres humanos. A realidade me parece sempre um espelho da ficção. Ou ao contrário, não sei.

Sentada próxima à janela, uma mulher olha o celular. O semblante é triste e preocupado. É a filha do homem de boca desdentada. Ele caiu em casa e também bateu a cabeça. Mas tem a desculpa dos 84 anos e um derrame no meio do seu caminho de tartaruga.

Outra enfermeira — jovem, calça apertada a realçar o contorno das nádegas — deixa uma cadeira de rodas no quarto. “É para levar ele.” “Levá-lo”, penso com certa arrogância. Olhamos, eu e o pai, ao mesmo tempo para as rodas da cadeira. Um pedaço de esparadrapo deixa um rastro no pneu fino. Deve ser de algum curativo que se soltou. Pelo menos, não há sangue aparente.

De repente, surge outra enfermeira (quantas existirão neste hospital?) e leva embora em silêncio a cadeira de rodas. Sem saber o que fazer, ajudo o pai. Ele faz questão de colocar as calças. Eu finjo desviar o olhar. Nunca tivemos nenhuma intimidade, nenhuma conversa de pai e filho, nenhuma brincadeira só nossa, nenhum segredo compartilhado. Nunca fomos pai e filho. Ao colocar a camisa da seleção brasileira, penso nos milhões que vale o futebol e na miséria que nos acompanhou da roça à cidade grande. Um pensamento ingênuo enquanto a chuva segue a marulhar na calha.

Quando a enfermeira retorna e vê o vazio da cadeira de rodas, digo “levaram”. Ela me olha com certo desalento, estica o pescoço de tartaruga para o corredor. “Está vindo”, diz. Penso: “Quem está vindo?”. Era a outra enfermeira empurrando o breve furto. Jogamos, não sem dificuldades, o pai sobre a cadeira de rodas. Ele se encolhe todo ao atestar a derrota de que não consegue caminhar. “Mas o que ele tem?”, pergunto. “Não sei”, responde a enfermeira. “Mas e os exames?”, pergunto. “Não deram nada”, responde a enfermeira. “Mas ele não consegue andar. O que eu faço?”, pergunto. “Ele só precisa tomar estes remédios”, responde a enfermeira. E começa a ler a receita. Noto que lê com a ponta dos dedos, contando as letras, com muita dificuldade. Enfermeiras deveriam ler melhor, penso. Mas não digo nada. Estou cansado e só quero arrastar o pai para bem longe. Vou levá-lo a um novo médico em breve.

No início da rampa, a enfermeira pede que o pai tenha cuidado, que mantenha o corpo firme. Isso me parece uma ironia. E empurra a cadeira de rodas com um pai feito tartaruga ladeira abaixo.

***

PS. Estendo a receita ao atendente da farmácia. “Este medicamento não existe mais”, diz ele. Meu olhar incrédulo o faz agir com rapidez: “Leve este aqui. É o mesmo princípio ativo. Já avisei várias vezes ali no hospital para não receitar mais este aqui, mas acho que eles esquecem”, diz apontando a receita. Tento afundar a cabeça entre os ombros e desaparecer. Mas preciso de mais treino. Ainda sou uma tartaruga incompleta.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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