Mulher do fim do mundo, de Tatiana Pequeno

Lendo e relendo este poema, chama a atenção a métrica irregular e a pontuação que parece por vezes resfolegar, como se em ato sexual desordenado
Tatiana Pequeno, autora de “Mulher do fim do mundo”
01/02/2021

um pedaço de carne assim querendo vara
mete com força pra ensinar a temer o corpo
macho que é sério estoca e põe de quatro
arreganha a pele simulando arrimo e estupro

se for loura a gente cai fundo e exige dp anal
se for gorda a gente troca o nome fura o
plástico dá o número errado e goza dentro
de velha oferecida a notícia é a buceta seca
o que pra alguns adianta o babado da saliva

para as negras um caralho maior que baste
o tamanho gigante da safadeza e da burrice
lésbica assumida a gente cur(r)a na porrada
devolvendo a ela o cheiro viril do hormônio
esquecido

com as que se casam com homens que têm
dinheiro mais vale é o juízo, chamar de puta
açoite para as que exigem pensão, nome, brio
vagabunda que não labuta é piranha que já já
vai arrumar outro filho.

a que discute, critica e estuda é sempre mal-amada
(que nojo dessas mal-comidas) a que se dedica aos
afazeres domésticos é fracassada, frágil ou entristecida
bento é o gosto da porra, sagrado o suor másculo
das virilhas

mulher se queima
mulher a gente chuta
e se a gente não derruba
crava a linguagem do medo em outra
que essa outra, com medo, chuta ou derruba
mulher a gente mesmo queima

sábia e douta mesmo é a condição dos homens
que ao nascerem ganharam de presente um prêmio
o poder de relegar aos cães ou aos porcos o largo ódio

e preencher o mundo (e toda área de comentários)
com altos corolários de escárnio, totalidade e desprezo.

O que mais espanta e atordoa nesse impactante poema de Tatiana Pequeno? Todo ele, é certo, considerando o conjunto das atrocidades que os homens executam contra as mulheres, a violência histórica e cotidiana do falocentrismo, a total ausência de sensibilidade e afeto do sujeito lírico masculino que, representando o coletivo dos machos, se expressa no poema sem pudor ou vergonha da própria abjeção e misoginia.

De forma simultânea à surpresa de ler tanta indignidade e ignomínia, quem (leitor/leitora) se aproxima do poema se espanta ao perceber a tal persona lírica “macha” em versos de uma autora mulher, militante, feminista. Como dirá Alberto Pucheu no posfácio de Onde estão as bombas (2019), “altamente incômoda, a estratégia não é a utilização de uma voz de mulher a defender diretamente a ‘mulher do fim do mundo’, a mulher animalizada, a mulher estuprada, a mulher matável, submetida a um feminicídio dos maiores, mas a de assumir a violência do macho na voz do próprio violador, expondo-a, ao limite, desde dentro, desde seu horror”. Tanta violência e perversidade encontram eco na dureza e rudeza das palavras, que ampliam o espanto: pedaço de carne, vara, mete com força, arreganha, estupro, dp anal [dupla penetração], goza dentro, buceta seca, caralho maior, cur(r)a na porrada, puta, açoite, vagabunda, piranha, gosto da porra, mulher a gente mesmo queima.

Lendo e relendo o poema, chama a atenção, entre as oito estrofes, a métrica irregular e a pontuação que parece por vezes resfolegar, como se em ato sexual desordenado, não consentido, como que simulando o desarrazoado do discurso (“a gente troca o nome fura o/ plástico dá o número errado”). E não há como deixar de perceber, desde o título, o eco da canção homônima, Mulher do fim do mundo (2015), na voz de Elza Soares (letra de Alice Coutinho e Rômulo Fróes), em que uma mulher de “pele preta” recorda e enfrenta situações de sofrimento em clima de carnaval, mas quer superá-las por meio de seu canto: “Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim”. O poema de Tatiana leva a voz de Elza adiante, mostrando que grande parte de tais situações se deve exatamente ao “macho adulto branco sempre no comando”, como denunciou o poeta baiano. Comando que, na verdade, é o fracasso cabal do processo civilizatório.

Outro espanto vem da longa lista de mulheres transformadas em alvo de ofensa, assédio, estupro, tortura: ora é a loura, ou a gorda, a velha oferecida, as negras, a lésbica assumida, as oportunistas interesseiras (“as que se casam com homens que têm/dinheiro”), as legalistas espertas (“as que exigem pensão”), a puta, a vagabunda, a piranha, a intelectual (“a que discute, critica e estuda”), a dona de casa (“a que se dedica aos/afazeres domésticos”). Todas elas neutralizadas, coisificadas, objetificadas desde o primeiro verso como um mero “pedaço de carne” — do qual o macho glutão pode se servir. Verso a verso, os horrores se acumulam.

No recente e indispensável Por uma crítica feminista — leituras transversais de escritoras brasileiras (2020), Eurídice Figueiredo explicita várias perspectivas teóricas ligadas ao feminismo e analisa muitas obras narrativas de autoras mulheres. No capítulo inicial, “Feminismos e feministas: contra a dominação masculina”, apresenta e discute Joan Scott, bell hooks, Chimamanda Adichie, Marie-France Hirigoyen, Nelly Richard, Rosi Braidotti, Gayatri Spivak, Elizabeth Grosz, Elisabeth Badinter e Margaret Atwood. A certa altura, afirma: “Para participar da vida política e do debate epistemológico, as feministas têm elaborado teorias cada vez mais sofisticadas sobre as imposições da sociedade falocrática, sobre as construções discursivas que concernem às mulheres e sobre a literatura produzida por mulheres. Não existe unanimidade sobre nada, pelo contrário, são muitas as discussões e as dissensões. Uma delas diz respeito justamente à importância da teoria ou à sua rejeição, em proveito de mais prática política”. O contundente poema Mulher do fim do mundo participa, nesse sentido, de um movimento maior do livro Onde estão as bombas, que é o tom reflexivo, ensaístico, crítico dos poemas do livro, justamente pensando numa “prática política” (como o vídeo Tatiana Pequeno: muambas e bombas para o nosso tempo deixa transparente).

Não à toa o livro de Tatiana se desenvolve e “explode” a partir das ambivalentes jornadas de 2013, do golpe jurídico-midiático de 2016 contra Dilma, da prisão orquestrada de Lula em 2017, do assassinato covarde de Marielle Franco em 2018, da eleição do ultradireitista Bolsonaro em 2019. Algo se quebrou no suposto “processo civilizatório” que o Brasil vinha experienciando, e o politicamente correto e as bandeiras de justiça social foram e vêm sendo derrotados. Talvez seja esse o motivo pelo qual a poeta tenha dado a voz no poema a esse tipo de homem que, sem vergonha, se orgulha de sua hombridade (para outros, seria machismo e mesmo crime; mas ele está pouco se lixando). Todo o livro de Tatiana são estilhaços desse contemporâneo que nos une e aprisiona, mas nos chama à revolta, resistência que parte pra cima (como em poema angélico-adiliano e antílope-cetáceo, contra a gordofobia; como em visitações da menarca, contra o abuso sexual; como em nós estamos preparadas desde o jardim de infância, contra a fatalidade da miséria; como em o assassinato de marielle, contra o silenciamento da revolta).

Poemas como esse Mulher do fim do mundo constrangem, porque jogam na cara aquilo que todos sabemos: o preconceito, a burrice, a insegurança, o ressentimento, a autoilusão, a brutalidade dos homens espantam. No pior sentido jamais imaginado. (Não no sentido singular e alto, de espanto como assombro, que Alberto Pucheu utilizou em sua pesquisa para professor titular da UFRJ, Espantografias: entre poesia, filosofia e política, graças à qual passei a conhecer mais a obra de Tatiana Pequeno e, de igual modo, de Danielle Magalhães, cujo poema terror é, de fato, um dos mais desconcertantes poemas de nosso tempo). Isto é, o espanto espanta de forma diversa. Há quem — e talvez seja a maioria, já não tão silenciosa — não se espante com Mulher do fim do mundo, de Tatiana Pequeno. A esses, retomando a voz-mulher autora que inventou a voz-homem do poema, resta o nosso escárnio, totalidade e desprezo. Poemas, e bombas!, neles. E, retomando a música de Elza, pensando no poema de Tatiana, em vez de “Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida”, a hora é de “Quebrei o cara e me livrei do resto de sua vida”. A partir do fim do mundo, e do fim da linguagem do medo, e do fim da condição dos homens, quem sabe, a mulher mude o curso da história: para que seja precisa a fala do filho de um poeta baiano, e para que mulheres e homens sejam, uns dos outros, abrigo, colo e chão.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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