PARA NÃO ESQUECER № 4 contra Cabo Anselmo, de Paulo Ferraz

Custa crer que "Vícios de imanência", o difícil e doído livro de Paulo Ferraz, tenha tido tão pouca repercussão
Paulo Ferraz, autor de PARA NÃO ESQUECER № 4 contra Cabo Anselmo
01/07/2020

Um país se faz com traidores, de todos os tipos, em todas as classes.

Pessoa Jurídica de Direito Público contrata homem jovem com pinta de galã capaz de seduzir as moças, não é preciso experiência, basta fazê-las suspirar por um homem ideal, trabalhador, pai de família, com futuro promissor. Há vaga também para esportista habilidoso que na hora do pênalti saiba com precisão de bala bater pra fora — recomenda-se ter olhos mansos, capazes de olhar para a câmera e fazer com que todos acreditemos no acaso. 

Um país se faz com traidores e traídos, se faz com vencedores anônimos, heróis de gaveta que não portam medalhas nem condecorações, sem que uma placa de rua lhes preserve os feitos. Um país se faz com o rapto da memória, com a absolvição sem sentença, quando todos os canalhas voltam pra casa sem dor e sem culpa. Um grande país se faz quando jogamos pás de cal em valas comuns, nos rios e nas matas. Vamos todos nos dar as mãos por esse grande país, mas como nem todos estão aqui, procurem a mão de Soledad e tragam-na até aqui para que seus ossos esquecidos também compactuem.

 

Custa crer que um livro como Vícios de imanência (2018), de Paulo Ferraz, tenha tido tão pouca repercussão, a despeito de contemplado em concorrido edital em São Paulo e de semifinalista do prestigioso Prêmio Oceanos. Sim, é um livro difícil e doído, como o poema em pauta ilustra. Por isso mesmo, desafiador. É um livro pensado (denso, complexo) que, portanto, pede uma atitude afim, atitude de travessia. No posfácio, Renan Nuernberger aponta com precisão um dos nós que o livro de Ferraz alinhava, a saber, “a procura por uma forma que carregue em si mesma o impasse entre o registro documental e a imaginação poética, forçando ambos a se olharem mutuamente”. Procura e impasse que envolvem os 13 poemas da série Para não esquecer. Se não devemos esquecer Frei Tito, Manoel Fiel Filho, Pato N’Água, Maria Bonita, os panarás e os soldados da borracha (pesquisem, pesquisem), para os quais o poeta elabora homenagens, também não devemos nos esquecer de Médici, Erasmo Dias, Cabo Anselmo, Sérgio Fleury, Newton Cruz, Filinto Müller e o DOPS, contra os quais o poeta dirige denúncias e acusações. É a poesia, ativa e crítica, escovando a história a contrapelo, para fixar célebre expressão benjaminiana entre nós.

O tom geral do poema mistura ironia e amargura, e solidariedade aos vencidos. Em síntese, o poema diz de um tipo de país que se faz com o “rapto da memória, com a absolvição sem sentença, quando todos os canalhas voltam pra casa sem dor e sem culpa”. Tipo de país em que pouco importa que um presidente defenda e mesmo cultue publicamente torturadores, feito o sórdido e sombrio Ustra; ao contrário, seus eleitores e cúmplices devem aprovar, alguns tacitamente, tal “viés ideológico” — que mata. Tipo de país que produz traidores, feito esse também sórdido Cabo Anselmo, cuja biografia no Wikipedia (sic) destaca: “agente infiltrado das forças de repressão do governo militar, Anselmo coletava e fornecia aos militares informações que lhes permitiram capturarem guerrilheiros e opositores da esquerda, incluindo sua noiva, que, mesmo grávida, foi brutalmente torturada” — e morta. (Além da consulta a estudos específicos de história, vale muito a leitura do comovente romance de testemunho Soledad no Recife (2009), de Urariano Mota.)

Sim, Soledad Barret Viedma foi barbaramente morta, junto com outros companheiros, na Chacina da Chácara de São Bento, nos arredores de Recife, graças à delação do próprio namorado, este pérfido Cabo Anselmo, contra o qual Paulo Ferraz escreve. Daí o poema, com áspero deboche, dizer que o Estado “contrata homem jovem com pinta de galã capaz de seduzir as moças”, que saiba fingir, tenha sangue frio e “precisão de bala”. Nesse ano de 1973, o chefe de Anselmo era o famigerado Fleury — a quem o traíra entregou a namorada grávida e demais militantes para morrerem —, e o chefe de todos era o general Médici, o mais linha-dura dos presidentes do período militar (1964-85). Para este presidente, o poema Para não esquecer № 1/ contra o General Médici pergunta, lembrando o Todesfuge [Fuga da morte] de Paul Celan: em seu “porão, vi o enforcado, a afogada, o enlouquecido, o professor, o metalúrgico. Quantas crianças mais mamaram de teu leite aziago, Garrastazu?”. Já em Para não esquecer № 5/ contra Sérgio Paranhos Fleury, a voz de um torturado relata o que passou sob a rédea do hediondo delegado: “enquanto me batiam, enquanto me jogavam álcool, gasolina e querosene, enquanto me mijava e me cagava, enquanto cuspia sangue.  Verdade, a carne é fraca. Ossos também”. Se o termo “imanência” no título pode aludir (nos iludindo) ao caráter intransitivo e autorreferencial da linguagem (em especial, a poética), no entanto se trata, como adverte Tarso de Melo na orelha, de “coloca[r] o leitor diante da árdua tarefa de se orientar por entre as tramas de um livro que tanto convoca para sua dança interior quanto repele, cheio de arestas, nosso desejo de abrigo, ao esfregar contra nossos olhos as feridas de um passado que não passa”. O trauma e o pesadelo retornam (ou continuam) em nosso tempo — tempo de pandemia, de estupidez, de neofascismo.

Osso é metonímia de cadáver, e metáfora de morte. O grande acordão da anistia (“esquecimento”, desde o étimo grego) ao fim da ditadura esqueceu exatamente ossos, cadáveres, mortes, corpos de tantos e tantos que tombaram em busca de justiça social, de liberdade, de democracia em sentido lato. O historiador José Luiz Werneck da Silva vai ao ponto da questão, quando diz, em livro com título que coincide em parte com a série de Paulo Ferraz, A deformação da história ou Para não esquecer: “A outras memórias coletivas foi imposto o esquecimento, como a dos militantes de esquerda, da guerra revolucionária. […] Muitas vidas humanas também foram esquecidas ou até mesmo silenciadas definitivamente pela ditadura, dentre os que ‘fizeram vivendo’ as memórias da resistência”. Neste acordão, neste pacto, neste aperto de mãos “por esse grande país”, há muitos, muitos ausentes (para os quais, por isso, os movimentos de resistência dizem “presente”). Entre essas mãos, falta a de Soledad: “procurem a mão de Soledad e tragam-na até aqui para que seus ossos esquecidos também compactuem”. E falta a mão de Aurora Maria Nascimento Furtado, a Lola. E faltam as mãos de Olga, Elisa, Heleny, Helenira, Ísis, Alceri, Pauline, Iara, Maria Lúcia, Ana Rosa, Margarida Alves, Dorcelina e Roseli Nunes, para rememorar apenas alguns nomes — de mulheres — que Alipio Freire registra em seu livro de poemas Estação Paraíso (2007).

A certa altura do excelente Literatura, violência e melancolia (2012), Jaime Ginzburg pergunta: “por que, em diversos pontos do mundo, em diferentes épocas, surgem seres humanos capazes de realizar os mais variados horrores contra outros seres humanos?”. Seu livro, entre outros estudos (como As formas da violência, de Xavier Crettiez), se dedica a tentar entender dilema aparentemente tão óbvio quanto aporético. Ginzburg analisa, a propósito, como as mortes de Ana (Lavoura arcaica), Diadorim (Grande sertão: veredas) e Madalena (São Bernardo) deflagram um — tardio — mea culpa dos narradores de Raduan, Rosa e Graciliano. Em Vícios da imanência, Paulo Ferraz persegue essa trilha da reflexão política. Entre tantos, leia-se o genial poema O Ministério da Economia parece que vai resolver. Tal trilha, todavia, Ferraz  vem desbastando desde há algum tempo, como procurei demonstrar em análise que fiz (em meu livro Poesia brasileira: violência e testemunho, humor e resistência) de seu tragicômico poema De uma crítica publicada num suplemento cultural de domingo, de Evidências pedestres (2007), onde o exercício dos “vícios de imanência” já se fazia, como nos provocadores metapoemas Ainda barrocos ou Para Noel.

Paulo Ferraz tem esse vício — de experimentar formas (veja-se seu também desafiador De novo nada¸ 2007). Mas as formas têm recheio, se é que recheio e forma se separam. Todos os treze poemas da série Para não esquecer, como este contradedicado ao canalha cabo, se dão em formato de prosa, não de verso (tradicional). E há margens, itálicos, cores, quebras de toda ordem surpreendentes. Vícios. Vícios de poeta que, com formação em Direito, não esqueceu que, sobre tudo, vale a vida, recheio maior. De poeta que, sem medo, faz poemas contra e poemas para. Aqui, toda solidariedade para quem seja Soledad, para que não nos esqueçamos dela, nem de seu bebê não nascido, nem de seus companheiros Eudaldo, Evaldo, Jarbas, José Manoel e Pauline. Sigamos, ainda, de mãos dadas. A vida — presente — quer isso de nós.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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