Golpes e fatos alternativos: atenção!

Alinhavados com astúcia numa narrativa coesa, fatos alternativos são poderosas armas políticas: bombas atômicas na infodemia contemporânea
Bolsonaro e Trump: um deles já caiu
01/02/2021

Esses fenômenos acontecem duas vezes:
A primeira como nunca, a segunda como sempre.
(Boaventura de Sousa Santos, Segundo Setembro)

Verdade factual
Na experiência histórica da ágora grega, apesar de limites bem conhecidos, pela primeira vez a palavra assumiu função deliberativa na procura de uma boa condução da pólis. Uma condição se impôs ou a tentativa seria frustrada antes mesmo de principiar: era indispensável distinguir fato de rumor. Na esfera íntima, o rumor naturalmente manteria seu império; contudo, somente fatos seriam admitidos no espaço coletivo de discussão. Uma das funções mais relevantes do theoros (teórico) consistia justamente no estabelecimento dessa diferença. A ágora ateniense imaginou um dispositivo anti-fake news — se você me permite um anacronismo bem-humorado.

Dispositivo duplo: exclusividade do fato na deliberação pública e pausa necessária para a reflexão. A ascensão transacional da direita e da extrema-direita é incompreensível se não considerarmos a completa subversão desses dois princípios, pois a desinformação sistemática e o tempo vertiginoso das redes sociais são os instrumentos dominantes em seu repertório pós-político. Não há resposta simples para o dilema contemporâneo do modelo da democracia representativa. Contudo, posso oferecer uma hipótese: precisamos resgatar o pensamento de Hannah Arendt acerca da centralidade da verdade factual para encontrar um ponto de equilíbrio entre verdade e política. Nas palavras da filósofa:

Mesmo que admitamos que cada geração tem o direito de escrever sua própria história, não admitimos mais nada além de ter ela o direito de rearranjar os fatos de acordo com sua própria perspectiva;“não admitimos o direito de tocar na própria matéria fatual”.[1]

É óbvio que não se trata de uma fé cega no “fato”, visto como exterior à narrativa que o organiza. A mudança de perspectiva implica seu rearranjo, supõe assim uma modificação substancial da interpretação. No entanto, sem uma dimensão minimamente objetiva, o espaço público se desmancha no ar e a convivência coletiva se torna uma estéril batalha de versões. O analfabetismo ideológico bolsonarista produz um ameaçador caos cognitivo precisamente ao confundir rumor e fato.

Alternative facts” ou “fact-based America”?
A ridícula tentativa golpista de Donald Trump fornece uma confirmação inesperada da noção de verdade factual. Se passarmos da caricatura à caracterização do evento, aprenderemos uma lição fundamental para lidar com o bolsonarismo, sobretudo num ano que promete ser muito difícil.

Voltemos um pouco no tempo: no dia 22 de janeiro de 2017, logo após a posse de Donald Trump, o porta-voz do presidente, Sean Spicer, afirmou que o número de pessoas que se deslocou a Washington para a cerimônia era muito maior do que a multidão presente na investidura de Barack Obama. Imediatamente, e com grande facilidade, comprovou-se o oposto: a comparação das fotografias áreas das duas ocasiões chega a ser humilhante para Trump.[2] Numa entrevista à NBC, a conselheira do presidente, Kellyanne Conway, ao ser questionada sobre a falsidade da informação, superou o constrangimento com um lance de gênio, propondo uma noção-síntese de governos como os de Donald Trump e Jair Messias Bolsonaro: “The Press Secretary gave ‘alternative facts’”.[3]

Fatos alternativos! Conceito que recusa a distinção apolínea entre rumor e fato, com base no tempo vertiginoso do universo digital, que dificulta a checagem imediata dos dados, e cuja ação direta inaugura a pólis pós-política por meio das redes sociais. A potência dos alternative facts na criação infatigável de narrativas foi comprovada à exaustão pela capacidade de manter as massas digitais mobilizadas em permanente excitação. Se fosse necessária uma prova definitiva, bastaria observar a reação dos apoiadores de Trump e sua disposição em acreditar nas mais absurdas teorias conspiratórias, numa fronteira tênue com a insânia que tanto inquietava o Dr. Simão Bacamarte. De igual modo, a habilidade de Trump e de Bolsonaro tanto em pautar o debate público quanto em desviar a atenção de temas que lhes são desfavoráveis relaciona-se intrinsecamente ao milagre de multiplicação de alternative facts.

A produtora Brasil Paralelo assumiu a tarefa de produzir fatos alternativos em série, sem parcimônia alguma, de modo a difundir versões revisionistas da história brasileira. Na entrevista dada ao deputado federal Eduardo Bolsonaro, o presidente, ostentando o livro do abjeto torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, A verdade sufocada, traduzia em português hesitante o achado de Kellyanne Conway:

Então, tem os “fatos” aqui. Recortes de jornais, né? Que… (sic) noticiava o fato em si. Então, não tem como fugir disso aqui… E como nós nos livramos do comunismo naquele momento. Não tem que se envergonhar disso. É uma história, com H, não é historinha contada pela esquerda. Então… isso daqui [Bolsonaro folheia o volume de A verdade sufocada] devia ser uma leitura obrigatória, né? de pessoas que queiram saber da verdade… o que foi aquele período de pré-1964 e um pouquinho depois do 1964, também. Então, A verdade sufocada é um livro com fatos, né? que aconteceram na história recente do Brasil.[4]

Os fatos alternativos do coronel Ustra são bem conhecidos: nunca houve tortura durante a ditadura militar. A ascensão da extrema-direita no Brasil é incompreensível sem essa torção perversa de dados objetivos em narrativas conspiratórias, cujo eixo não se altera: dada a iminência do “perigo vermelho”, toda e qualquer violência se justifica.

(E nem mencionei a força dos fatos alternativos em correntes de WhatsApp em campanhas eleitorais: mamadeira erótica, ideologia de gênero, e tantos delírios similares produzem com celeridade desestabilizadora ondas-tsunami.)

Contudo, como governar no reino encantado e narcísico dos fatos alternativos? Como negar a gravidade de uma crise mundial de saúde e ainda assim esperar que o eleitorado não seja capaz de distinguir rumor de fato diante de um caso dessa seriedade? Não há disputa de narrativas que se sobreponha ao valor da Vida; o encontro com a finitude esclarece brutalmente que a Morte não pode ser reduzida a “memes”, por mais compartilhados que sejam. Como perder uma eleição e ainda assim esperar que juízes sérios e donos do próprio nariz aceitem reverter o resultado legal através de ações sem evidências consistentes, sem provas claras de uma fraude sistêmica que se alega ter ocorrido?

Devo ser mais claro: bem urdidos e alinhavados com astúcia numa narrativa coesa, fatos alternativos são poderosas armas políticas: bombas atômicas na infodemia contemporânea. Contudo, num tribunal independente, avaliados por juízes autônomos, fatos alternativos são nada, coisa alguma: flatus vocis. A verdade factual se impõe.

(Eis aí um programa de ação: olvidemos as declarações diversionistas do presidente e nos concentremos no esclarecimento objetivo do fracasso de seu governo.)

No programa da MSNBC, News Today, no dia 30 de dezembro de 2020, comentando a tentativa golpista do presidente derrotado nas eleições, a apresentadora Nicole Wallace lançou mão de uma expressão igualmente notável e que pode ser entendida como autêntico epitáfio da presidência de Donald Trump: “Georgia goes one step further to assure those of us living in fact-based America that there was no fraud whatsoever in the November election there”.[5]

Na América baseada em fatos! Contra a epidemia de alternative facts, o antídoto mais eficaz: fact-based America. É notável como as duas expressões delimitam momentos distintos no tempo, como se fossem instantâneos de rara agudeza, retratos acabados de duas épocas. A conselheira de Trump antecipou o sentido dos 4 anos de sua conturbada presidência, em boa medida “performada” nas redes sociais, com destaque para o uso obsessivo, inclusive compulsivo, do Twitter: usina de produção de alternative facts

(Jair Messias Bolsonaro mandou improvisar em seu armário um escritório para “trabalhar” nas redes sociais em madrugadas insones — e dias ociosos.)

A apresentadora da MSNBC anunciou o fracasso da guerra cultural que se torna refém da própria vitória. O segredo para que o estabelecimento de uma democracia iliberal não tenha sido bem-sucedido é a independência dos poderes Judiciário e Legislativo. Trump fracassa porque a Suprema Corte não pode aceitar ações sem fundamento, ainda que a maioria de seus membros favoreça causas conservadoras.

(Atenção: conservadorismo nada tem a ver com extrema-direita ou com aventuras golpistas.)

Num futuro próximo, o golpe frustrado de Trump será reconhecido como um evento epocal precisamente pelo seu insucesso: o ataque à democracia deve ser enfrentado com o resgate da verdade factual. Essa lição será decisiva em 2021 para a superação do bolsonarismo e sua pulsão autoritária.

(Um fenômeno que não pode acontecer duas vezes.)

[1] Hannah Arendt. “Verdade e política”. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988, p. 296, grifos meus.

[2] “FOTOS: posse de Trump em 2017 x posse de Obama em 2009”. G1, 20 de janeiro de 2017: http://glo.bo/3ok2bhZ

[3] “Kellyanne Conway: Press Secretary gave ‘alternative facts’” – Meet the Press – NBC News (ver a partir de 01:58): https://bit.ly/3hJKZ2Z

[4] Eduardo Bolsonaro: “O Brasil precisa saber: com o Presidente Jair Bolsonaro”. Ver o vídeo (de 40:00 a 40:37): https://bit.ly/2L2MfSE

[5] MSNBC, News Today, no dia 30 de dezembro de 2020 (ver a partir de 01:51): https://bit.ly/3rUIi33

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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