A suavidade do escuro

"Também os artistas são vítimas de suas obras. Também eles não as suportam. Também eles se assustam com os dejetos que cospem para fora de si."
Roland Barthes, escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês
01/09/2012

Leio os Cadernos de viagem à China (Martins Fontes), de Roland Barthes. Em visita às grutas de Longmen, para minha surpresa, anota o escritor em seu diário: “muitas vezes espero os outros do lado de fora, por ser incapaz de olhar por muito tempo um objeto de arte”. Releio, é isso mesmo o que ele nos diz: Barthes se declara incapaz de se deter “por muito tempo” diante da arte. Ela o assusta. Ela o afasta. E ele não a suporta.

Não sei o que pensar a respeito de suas inesperadas palavras. Um crítico — grande crítico, mas talvez maior poeta ainda — admite sua incapacidade. Admite seu fracasso. Em outro trecho, destacado na contracapa da edição brasileira, ele continua: “A gente não sabe nada, nunca saberei nada: quem é o rapaz ao meu lado? O que ele faz durante o dia? Como é seu quarto? O que está pensando? Como é sua vida sexual?”. O crítico afirma, sem pudor, seu desconhecimento. Sua ignorância. Por isso sua crítica se aproxima da poesia: porque não deseja perfurar, se contenta em acariciar.

Voltando à visita às grutas históricas, um irritado Barthes agora observa: “O guia insiste em me dar explicações. Seu hálito tem o cheiro da comida”. Das belas explicações, resta um cheiro desagradável. Das belas palavras, uma lembrança. Até que, chegando a uma pequena gruta, ele se defronta com o medo que o desconhecido provoca. Anota, talvez com as mãos trêmulas: “Pequena gruta: nas paredes prescrições contra a loucura (= ‘a palavra desordenada do demônio’)”.

Ali, onde a incompreensão se instala, nomeia-se a loucura. Se há desordem, há loucura também. E a loucura, Barthes conclui, é uma metáfora do mal. Contudo, onde alguns (talvez Barthes, mas certamente aqueles chineses) vêem a loucura, podemos ver a poesia. Ela aparece em flashes desordenados — seus cadernos de viagem são uma colagem. Impressões embaralhadas. Palavras mal digeridas. Reflexões abruptas e irrefletidas. Como costumam ser os diários.

Mais à frente, anota Barthes ainda: “Lembrando o incidente de ontem à noite, a descoberta inesperada do cinema ao ar livre, tão cheio de coisas descabidas (o filme romeno, as cadeiras trazidas, a suavidade do escuro): isso provaria que é a presença contínua, acobertadora dos funcionários da Agência que bloqueia, proíbe, censura, anula a possibilidade de Surpresa. Incidente, Haiku”. Nas viagens à China dos anos 1970, lembra uma nota de pé de página, sempre impecavelmente organizadas, “tudo o que possa ser da esfera do imprevisto, acidental, improvisado ou espontâneo é rigorosamente excluído”.

Volto ao início. Mas não é isso — o acidental, o improvisado, o imprevisto — a arte? E não é isso justamente o que espanta e afasta Barthes, impedindo-o de observar por muito tempo uma antiga inscrição artística? Também os artistas são vítimas de suas obras. Também eles não as suportam. Também eles se assustam com os dejetos que cospem para fora de si. Ninguém — nem o crítico célebre, nem o poeta discreto — está livre desse susto. Esse susto designa a arte. Penso mais: ele “é” a arte.

Páginas antes, durante um passeio a Nanquim, já anotava Roland Barthes: “Nada do incidente, da dobra, nada do haiku. Nuance? Insípido? Nenhuma nuance”. Linhas retas, pensamentos retos, obras de arte (será mesmo?) retas. O país da retidão, apesar de sua escrita poética, com imagens que dançam. O haiku, que o escritor define como “o que cai, o que produz uma dobra e no entanto não é outra coisa”. O que deve ser banido: a dobra, o desvio, o inesperado. O que Barthes não suporta, levando-o (durante a visita às grutas) a se afastar: a mesma coisa. O medo está em todos nós, ninguém escapa.

Indignado consigo mesmo, Barthes anota em seu diário: “Há oito dias, não vivo o desabrochar da escrita, o gozo da escrita. Seco, estéril”. A atmosfera o engole. A ordem política o paralisa. Também o crítico prefere a desordem. Ele a saboreia, a rumina, a digere. Da desordem um crítico (um poeta) vive. Barthes sabe disso e não aceita o deserto que atravessa. Mais à frente, descreve uma pequena cena que, se lhe chama a atenção, lhe causa repugnância: “Elementos de cenário. Meninas. Escola. Aprendem pinyin. Estudar a Revolução. Têm bochechas vermelhas como nos cartazes de propaganda: saúde, entusiasmo, coragem”. Apesar do vibrante rubor que trazem nas faces, a vida (a arte da vida) parece estar em outro lugar.

Felizmente, penso, desde os distantes anos 1970, o mundo da retidão começou a ruir. No Brasil também. Ainda hoje ele sucumbe. Por exemplo: no Oriente Médio. Ninguém suporta mais a coreografia da felicidade, embora a felicidade em si seja inalcançável e só nos reste o consolo das fantasias. Um perigo que, ao ler Barthes, me ocorre: no mundo de hoje — da moda, das marcas olímpicas, do sucesso a qualquer preço — trazemos a retidão dentro de nós. Penso nisso e contradigo Barthes: apesar do medo, só nos resta sustentar o olhar. Não fugir. Suportar e tremer. Deixar-se afetar. Permitir que a arte nos dobre.

NOTA
O texto A suavidade do escuro foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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