🔓 Ventos de mudança

Estamos (nós, os brasileiros) afundados há quatro anos num pântano tenebroso causado pela violência de uma pestilenta chuva
Ilustração: Oliver Quinto
30/07/2022

Há ventos de mudança soprando
Recolhendo folhas em seu caminho
E as pessoas que são as folhas
Permanecerão em nossos corações
Eric Burdon

Há chuvas tão violentas que fazem mais do que levar telhados, transbordar rios e encrespar mares. Elas proporcionam tsunamis, estremecem sólidas estruturas de edifícios, corroem a fé de otimistas e, principalmente, devastam a terra até deixá-la estéril: os destroços expostos feito a ossada de uma ave após a refeição dominical da família. São chuvas ácidas, daninhas e, mesmo à luz do dia, escuras.

No caso de Edson, que retornara pra Bahia havia poucos meses e, com a bênção da recente aposentadoria e dos muitos biscates realizados fora do horário de expediente, erguera um pavimento no andar superior da casa da tia, em plena Liberdade, o estrago foi consideravelmente menor. E digo consideravelmente apenas pelo fato de uma telha solta ter atingido o carro do vizinho, que tinha seguro, e o vizinho entender que parte da culpa era do pedreiro. Pois ninguém da área, afirmou, confiava na excelência daquele profissional, mas quem era ele para se meter em assunto dos outros, não é mesmo?

Edson pagou a franquia do seguro e contratou um novo pedreiro para consertar o telhado. E perguntou a si mesmo se seria capaz de voltar ao ritmo e ao modo de ser de sua cidade natal após passar três décadas morando no Rio de Janeiro. Contudo, tinha consciência de não suportar mais habitar num local em que as milícias armadas e o tráfico dominavam as ruas a ponto de estabelecerem, conforme suas próprias conveniências, toques de recolher e fechamento do comércio.

Enquanto aguardava o início do show do A-ha em sua nova turnê pelo Brasil, Rodrigo enviou fotos para os amigos. Nos anos noventa, quando ouviu pela primeira vez Crying in the rain pelo rádio, não tinha certeza se gostara ou não. Ouviu de relance, a atenção concentrada em outra atividade qualquer. Só não mudou de estação, logo a princípio, por confundir a voz do cantor com Chris Isaak. Dias depois, numa festa, Cláudia trouxe o disco da banda e pediu para o DJ tocar. Rodrigo continuou em dúvida sobre o valor da banda e pediu minha opinião. Eu os classifiquei de Os Menudos do Pop Rock. Rodrigo riu, mas, por causa da Cláudia, que ele achara bonitinha, não esticou assunto. Os dois teriam uma filha chamada Marta e em todos os aniversários de casamento colocariam o álbum para tocar. No show, Rodrigo estava só. No instante que Morten subiu ao palco e anunciou a primeira canção, não chovia. Rodrigo não quis fazer uma selfie.

Como não era de sair muito, aquela tinha sido a primeira vez que isso acontecia. Emily nem sequer ultrapassara o balcão onde ficava o caixa, aguardava Seu Zezinho, que se virara de costas para pegar a carteira de cigarro solicitada, quando sentiu, atrás de si, alisarem as mechas de seu cabelo. O primeiro impulso foi o de buscar o aparelho de choque dentro da bolsa. Percebendo a tensão no rosto de sua cliente, Seu Zezinho perguntou ao homem que se apresentava vestido de camisa camuflada e tinha braços de fisicultor o que estava acontecendo. Ele se afastou vagarosamente e com cara debochada respondeu: “Oxe, estava sentindo o perfume da juba da princesa. Tem motivo pra treta não, coroa”. Emily pegou seu cartão de compras, passou pelo brutamonte e se retirou enfurecida. Chegando ao apartamento, jogou a bolsa no sofá, foi direto para o banheiro, abriu o armário da pia e tirou a tesoura de aço.

É provável que nos dias de hoje a maior parte dos moradores da capital não se lembre de como a cidade ficava nas temporadas em que o céu era todo recortado por relâmpagos, trovejava com insistência e imperava um medo absurdo de você ser arrastado pelas chuvas sem justificativa nenhuma de que houvesse feito algo minimamente errado no decurso da sua existência civil. O chão era pura lama e sujava as barras das calças, os sapatos, os pés, as rodas de jipes, as patas de cavalos e as almas. Quando enfim estiava, caso necessitássemos deixar nossos esconderijos para ganhar pedaço de mundo, precisávamos pular intermináveis poças, os olhos procurando as pequeninas ilhas marrons onde saltar. Ou mesmo, menino que eu era, simplesmente brincar com os vizinhos na porta de casa. Certa vez, Margareth e Carlos tomaram uma surra por terem sujado a roupa de escola. Eu gostava de desenhar e não tinha giz, só tijolo de construção. Mas, mesmo que eu quisesse, e eu queria, não dava pra desenhar um sol na calçada, pois calçada não havia ainda. Então, eu pegava um graveto qualquer e riscava a terra. Porém, o medo de ser arrastado persistia.

Há chuvas tão violentas que fazem mais do que levar telhados, transbordar rios e encrespar mares. Chove há quase quatro anos em nosso jardim. Que os ventos da mudança nos tirem desse tenebroso pântano.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

Rascunho