🔓 Os influenciáveis e os influencers

Nunca terminamos de nos surpreender com os caminhos misteriosos que levam alguns pelas linhas e entrelinhas dos livros, mas não levam outros
Ilustração: Dê Almeida
11/05/2021

* Série LeituraBR

Não, por favor, não se cansem de saber sobre a leitura e os leitores e leitoras. A gente nunca termina de se surpreender com os caminhos misteriosos que levam alguns pelas linhas e entrelinhas, mas não levam outros; umas pessoas se embrenham pelas sendas das letras, outras tantas sequer sentem curiosidade por um pingo no i. E para os primeiros é incrível como é que alguém consegue passar por esta vida sem uma farta e intensa experiência entre textos, livros e histórias.

Taí outro mistério para o qual não temos respostas difíceis, quanto mais as fáceis. Quem é que influencia outrem a ler? Retomando lá os resultados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 66% das pessoas dizem não terem sido influenciadas por ninguém para gostar de ler. Será possível? Já imaginou se leitura brotasse? Simplesmente a gente um dia acordasse com ela entre nossos desejos, hábitos, afazeres… simplesmente abrisse os olhos e ela estivesse lá, gigantesca, ocupando nosso dia a dia?

Que maravilha seria. Se a escola não passasse anos a fio se digladiando com listas e indicações que só levam bordoada; se professoras e professores não precisassem participar de infinitas reuniões para tentar descobrir de quem é a culpa ou de quem é o privilégio; se não fosse uma luta interminável pensar e constituir acervos de bibliotecas escolares (entre outras), que tentam feito sereias seduzir gente que só passa ao largo e de ouvidos tapados (ah, são sereias do bem); se meia dúzia ou menos de familiares não precisassem fazer campanhas de psicologia reversa para convencer adolescentes de que ler é legal. Ah, um sonho se a leitura simplesmente caísse do céu, subisse pelas pernas, se transmitisse pelo ar (vejam aí que esse tipo de transmissão é poderoso, pena que não acontece com coisa boa).

Fato é que, segundo os números, 66% dos nossos compatriotas que gostam de ler (vá desbastando aí os números) gostaram de ler por si sós. O problema é que 100% de mim não acreditam. Será que ninguém leva esse crédito? Bom, para compensar um pouco, as pessoas que admitem que passaram a gostar de ler por influência de alguém apontam, em primeiríssimo e digníssimo lugar, quem? quem? a professora ou o professor! Não me surpreende, mas também não me conforta. Pela ordem, segundo a pesquisa, é o seguinte: professores, mãe e amigos. Não era difícil de apostar nessa fila, não é mesmo? Dava para me arriscar na Mega-Sena e arrematar o prêmio.

Já sabemos aí por resultados de exames e pesquisas que o momento da vida em que as pessoas mais leem é justo quando estão na escola. Gente, pode espernear à vontade, fazer beicinho pra câmera, incitar a polêmica e desqualificar a escola, mas parece que frequentar aquele espaço tem um efeito positivo sobre pessoas e livros abertos. Por mais que se critique tudo o que a escola faz e que tenhamos aprendido a sentir um imenso desprezo pelos(as) professores(as), é ali naquelas redondezas, principalmente, que a mágica acontece (quando acontece, claro). Pelo que diz uma parcela dos(as) brasileiros(as), foi um(a) professor(a) que deu aquela dica esperta, que mediou um debate bacana, que indicou uma obra para um trabalho, que bateu um papo no corredor e nos fez tomar uma nota mental: ler X. É esse ser chamado professor ou professora que está por conta disso, que geralmente adora quando é match: estudante gostou do livro.

Depois vem a mãe. Com raras e honrosas exceções, é mamãe que põe pra dormir, que se enfia embaixo do cobertor puído, que lê junto aquela historinha surrada, que conta história até a gente fechar os olhos, que repete e repete o mesmo livro, na falta de novos. É a mãe. É ela que enche a paciência para a gente estudar, ir para a escola, entregar os exercícios. Mãe que faz dever junto, que verifica caderno, que encapa livro e põe etiqueta, que revende tudo no outro ano para comprar os próximos. É mãe que pinta na área quando a pesquisa pergunta quem mais influenciou seu gosto pela leitura. Depois da professora (ou do professor), é a mãe que está lá. E os amigos e amigas, claro, que chegam junto naquele boca a boca fatal. Acontece com muita gente, acontece de a amiga ler, comentar, despertar nossa curiosidade. Daí a gente pega o livro emprestado ou dá um jeito de arranjar. Bom, tá na pesquisa também que a maioria absoluta das pessoas não ganha livros de presente. Esses e essas não me têm como amiga, está claro. Tem gente que adora livro, tem gente para quem eu dou livro por pura insistência e teve Natal, ó, que só comprei livro para a meninada. Podem xingar, podem falar mal, minha parte eu fiz.

Alguns dias atrás, li um romance recém-publicado e pirei. Adorei a história, o jeito de contar, as surpresas da narrativa. Comentei com cerca de umas dez pessoas, das quais pelo menos a metade me pareceu ficar curiosa e disse que leria também. Três amigas estão lendo para a gente comentar. Meu namorado está só esperando vir à minha casa para ler também. E sabe lá quem mais leu e vai entrar nessa corrente boa de conversa. Não é qualquer coisa. É lindo, é muito, é esse tipo de força que fez, por exemplo, que certo livro de um escritor baiano meio iniciante se transformasse numa espécie de fenômeno literário e editorial notável, em coisa de um ano e meio de lançamento. Não basta ganhar prêmio, não basta ter contrato com editora poderosa, não adianta reza braba. Se as pessoas não contam umas para as outras, se elas não ativam essa correnteza linda que faz a leitura chegar a uma espécie de “transmissão comunitária”, o prêmio fica em cima do armário, a editora trabalha no vácuo e a reza… a reza não alcança a graça.

Se a gente juntasse a professora, a mãe e os amigos, será que daria um samba legal? Bem, mas não é para a maioria das pessoas que as influências adiantam. Diz que tem gente que se torna leitor/leitora por obra e graça de Ninguém. Bom, ando mais preocupada com o milagre do que com o santo. Viva São Ninguém, padroeiro dos leitores autofecundantes. Enquanto faço promessa para esse santo, continuo torcendo para muita gente leitora ir ficando bem influenciável.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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