Logo depois da escada tem uma porta Ć esquerda. Ć um apartamento estranho, com poucos Ć¢ngulos retos e muitos desnĆveis. Tem uma Ćŗnica janela, de frente para a rua. Ć uma dessas janelas de andar inteiro e a Ćŗnica fonte de luz natural. O ambiente onde tem o janelĆ£o Ć© uma sala. Tem livros espalhados por todo o canto.
O apartamento tem uma frente pequena mas é comprido, lembrando um pouco as construções antigas. Algo sobre o imposto ser calculado por essa medida, não lembro ao certo. Fica no Rio de Janeiro, em um bairro pobre-jÔ-foi-nobre, como muitos na cidade.
Na sala, além dos livros, uma pequena samambaia, um sofÔ velho, uma mesa de centro, duas cadeiras, um aparelho de som antigo. Não hÔ lugar para refeições. Para isso, deus inventou a cozinha.
Depois da sala, um lance com três degraus para cima. Ali fica a cozinha e, logo em seguida, o que um dia jÔ foi uma Ôrea de serviço. Sempre me incomodou a cozinha ser mais elevada do que a sala. Se acontece algum acidente hidrÔulico, a Ôgua vai escorrer toda para a sala. Deveria ser o contrÔrio. Não compreendo arquitetos.
Onde um dia jÔ foi a Ôrea de serviço com lavanderia completa, eu fiz um escritório. Não é como se eu cuidasse tão bem das roupas assim. Ali tem a segunda janela do apartamento, que dÔ para o vão de ventilação do prédio. Os outros apartamentos mantiveram lavanderias, então eu sou a única moradora que realmente passa bastante tempo olhando para o vão. O vão é uma gigantesca caixa acústica e escuto todas as conversas, de todos os apartamentos.
Agora descendo trĆŖs degraus de escada, um corredor e, nele, o quarto de um lado e o Ćŗnico banheiro de outro.
Ć um apartamento pequeno, estranho, mal localizado, mal ventilado, mal iluminado e mal frequentado. Como eu.
A porta de entrada nĆ£o fecha direito, entĆ£o coloquei aquele trinco de correntinha. Ć, fundamentalmente, um enfeite.
Chego em casa tarde. Sou seguida.
Logo depois da escada tem uma porta Ć esquerda, por onde escorre o sangue. Ć um apartamento estranho, com poucos Ć¢ngulos retos e muitos desnĆveis. Tem uma Ćŗnica janela, de frente para a rua. Os vizinhos da frente nĆ£o viram nada. NĆ£o sabem de nada.
Na sala, alƩm dos livros, uma pequena samambaia, um sofƔ velho, uma mesa de centro, duas cadeiras, um aparelho de som antigo e um corpo. O meu.
Acordo em pânico, coração a mil. O corpo dói de tensão.
VocĆŖ dorme.
Nunca te perdoei por isso.