🔓 Minhas férias (enfim!)

O período tão esperado pode ser um inferno transformado em paraíso graças aos atalhos da ficção
Ilustração: Thiago Lucas
10/05/2022

Estou realizando um sonho. Talvez me falhe a memória, mas eu queria muito, no momento apropriado, escrever a famigerada redação sobre as “minhas férias”. E parece que agora vou conseguir.

Que mal há em pedir um texto sobre um período que provavelmente foi atípico para a moçada em idade escolar? A redação “Minhas férias” foi demonizada, coitada, e já faz bem uns trinta anos. Foi acusada de pôr todo mundo no automático (ah, o Enem…), de não fazer qualquer sentido, de cultivar o profundo tédio e, principalmente, de estar muito mal sustentada por balizas chamadas “condições de produção”: sobre o quê, para quem, com que objetivo, que gênero discursivo etc.

Com todo o esforço feito, e que reconheço, continua sendo difícil escrever com sentido numa sala de aula. Meu sofrimento diário, aliás, justamente como professora de redação, é fazer que notem sentido em qualquer coisa que eu peça, mesmo quando vão junto as condições de produção mais explícitas do que filme pornô e mais estudadinhas do que o crochê da minha avó. Só falta pegar na mão para escrever, mesmo quando o papo não tem nada a ver com as férias.

Vale a experiência delirante?
Minhas férias não eram lá grande coisa. Reza a lenda que algum estudante, em qualquer parte do país ou do mundo, entregou uma folha em branco, só, com as pautas desacompanhadas, sob o título “Minhas férias”. Teria justificado, quando interpelado por esta espécie de afronta, que passara as férias dormindo; que a família não tem condições de viajar; que os pais trabalharam normalmente, autônomos que são; etc. Numa próxima oportunidade, ao escrever sobre o mesmo assunto, tratará de usar uma das estratégias que dão na escola feito mamona na cerca: fingir. Vai escrever “Minhas férias” e inventar qualquer coisa, compreendendo que a ficção também acalma os ânimos de quem precisa mesmo é dar notas.

Minhas férias eram bem chatas, na verdade, mas contava era a competição que acontecia na escrita, e subsequente leitura em voz alta, daqueles textos sobre fazendas no topo das serras, cavalgadas em éguas campeãs, aprender a ordenha com perfeição e alta produtividade; praias semidesertas, pousadas com ar-condicionado à beira das falésias, biquínis de grife, camarões e siris com um pouco de areia à degustação; festas, estradas, motores, cidades turísticas, ruínas históricas, lugares vistos em fotos nos livros didáticos. Ficção, ficção, ficção, referenciadas nos filmes da sessão da tarde e nas conversas pescadas entre peruas na escada rolante do shopping.

A real das férias
A real era a seguinte: eu queria dormir, dormir até meio-dia, para vingar os quase duzentos dias letivos obrigada a acordar na marra, em horário de quando só existia luz a vela; ficar em casa esperando a vizinha chamar para sentar no meio-fio e conversar fiado; voltar na hora do lanche e comer misto quente com queijo prato bem derretido; assistir à novela das sete; ouvir rock no micro system do pai; passar a madrugada jogando Atari, ouvindo a mãe reclamar daquelas musiquinhas e sonoplastias infernais. Essas eram as férias sossegadas dos sonhos. Agora a verdade, nua e crua: por quinze dias, eu era obrigada a fazer as malas com roupas que odiava usar (short, regata, biquíni), morrer de medo numa estrada por quase dez longuíssimas horas e chegar a uma cidade-formigueiro, quente feito o inferno, onde faltavam água e luz, episodicamente, devido à repentina e grotesca superpopulação. Uma vez lá, ficávamos à mercê dos horários e das atividades chatíssimas dos adultos (quase todos bêbados, os que mandavam… as demais só obedeciam), presos aos medos deles, tomando sorvete enquanto não podíamos nos mover livremente, dormindo no chão com outras crianças, vendo baratas passarem, às vezes, bem na altura dos nossos olhos, no assoalho da casa de veraneio alugada para a temporada (não será por acaso qualquer semelhança com aquele filme pastelão brasileiro chamado Os farofeiros, 2017).

Mas como contar isso, desse jeito? Não era o que queriam saber! Sequer a professora tinha a intenção de nos deprimir, induzindo essas lembranças. O negócio era escrever sobre férias felizes, iluminadas, animadas e que deixariam saudades, até o próximo período de recesso escolar. Ficção. O barato é, agora, saber a diferença entre ficção e relatório. E escrever sobre minhas férias, mas só porque eu quero. #chupa

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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