🔓 Hospital de quadros

O carinho e a atenção aos detalhes no minucioso trabalho de restaurar obras maltratadas pelo descuido
Detalhe do ateliê de restauro de Katia Ianelli
16/07/2022

Observo o ateliê de restauro de minha mãe: é um hospital de quadros. Ali dão entrada doentes e acidentados de todo o tipo, que são antes de mais nada examinados, fotografados e têm seu caso particular estudado através do infravermelho ou mesmo à simples vista com luz tangencial. O depoimento do proprietário da obra também colabora em certos casos, o histórico do quadro, seu local de exposição ou armazenamento. Nem sempre, porém, os depoimentos são fidedignos ou esclarecedores. Nem sempre se sabe o que de fato provocou certo rasgo ou furo numa tela, o tipo de bebida que ali derramaram e alguém depois tentou limpar, aumentando o problema numa disforme mancha encardida.

E se não são talhos abertos tragicamente nem furos nem respingos de um qualquer funesto acidente em meio a uma reforma, uma festa ou uma guerra conjugal espetacular, as ocorrências mais frequentes são de quadros maltratados por descaso, deixados no sol ou na umidade durante tanto tempo que, ao chegarem ao hospital, ou parecem variantes do retrato de Dorian Gray em avançado estado de degradação ou lazarentos carentes de um milagre, com seus pigmentos completamente afetados, lavados pela luz da manhã ou esbranquiçados por colônias de fungos ou craquelados feito terra esturricada.

Há ainda casos de reparo em restauros alheios malsucedidos, provenientes de duvidosas clínicas, que demandam cirurgias corretivas, retiradas de verniz, novo entrançar de fios, troca de remendos ou curativos, microscópicos retoques, estudos e mais estudos de cores para recobrar os tons originais. E então os maltratados vão se aprumando, desempenando, renascendo. Não só fungicidas, antibióticos, cera de abelha e limpeza profunda acodem nessa reabilitação. Tem também uma pitada de feitiçaria na minúcia com que finíssimas cerdas de pincel ressuscitam a luz numa superfície de cores desmaiadas, um algo a mais de obsessivo zelo em forma de trabalho.

A única médica nesse hospital, que acolhe desde casos brandos de enfermaria a calamidades de terapia intensiva, empenha conhecimento, técnica e esse algo a mais, de cuidado familiar, próprio de quem convive com quadros diariamente, há décadas, disso extraindo a boa máxima de que nada se deve passar num quadro para mantê-lo, nem nunca se deve passar por ele sem realmente vê-lo. Há que manter propício o ambiente, âmbito das horas, com determinadas condições de luz e sombra, temperatura e arejamento, num lugar a salvo de perigos periféricos como quinas de mesa, punhos fechados, cotovelos ou taças de qualquer tipo de bebida. Um cuidado com invisibilidades do bem-estar, também diariamente.

Então penso cá comigo que essa restauradora, minha mãe, tem a figura da própria menina que ela foi em alguns dos quadros que mantém — igualmente há décadas — nas paredes. Algo da sua primeira vida repousa ali do outro lado, o que talvez a invista de uma intimidade adicional com a conservação do frescor desse mundo de ateliê. Algo repousa ali do outro lado e sim: respira por suas tramas, tanto que não se pode vedar o verso de uma tela. “A pintura deve respirar”, diz a médica.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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