🔓 Excesso de bagagem

A pandemia tem nos obrigado a apagar definitivamente do celular contatos de gente querida assassinada por uma polĂ­tica genocida, corrupta e mesquinha
Lula e Janja sob a lua viraram motivo de risos e espantos
26/08/2021

Troco de celular. Junto com uma faxina e organização do aparelho caminha também a limpeza mental. Encontro, nos contatos, números de pessoas mortas (de fato e/ou emocionalmente). Removo algumas com raiva, outras com dor.

Lembro de que, quando minha mĂŁe morreu, demorei uns bons meses para conseguir apagar o contato dela da agenda. No primeiro dia de um trabalho novo, cheguei a pegar o telefone na mĂŁo para ligar para ela. Foi quando me dei conta de que se ela atendesse eu ficaria muito, mas muito, assustada. EntĂŁo, finalmente, apaguei o contato da agenda. Doeu. Doeu terrivelmente.

Quantos de nós pandêmicos estamos diminuindo, com brutalidade, à força, na dor, com sangue, nossos contatos? Como apagar um contato quando nos recusamos a admitir que a pessoa não está mais aqui? Que foi assassinada por uma política genocida, corrupta e mesquinha? Como explicar pro nosso coração que alguém importante se foi enquanto aquele negacionista arrogante e burro (ainda) sobrevive?

Alguns, os desafetos, retiramos da agenda com a pura força do ódio. Dá até vontade de mudar de número, só para ter certeza de que aquela assombração não vai mais nos encontrar. Para isso, felizmente, Deus inventou o block.

Outros, os afetos, retiramos da agenda a fórceps, rasgando a carne, arrebentando tudo aquilo que somos? Nessas horas penso em luta armada, revoltas e guerrilhas. Face à minha absoluta inaptidão com armas, o cenário apocalíptico só acontece na minha cabeça.

Precisamos lidar com os nossos problemas que — veja você que absurdo — não sumiram com a quarentena. Somos perseguidos ainda pelas perdas e pelo acúmulo de trabalho. Ao contrário do que pensa o nosso empresariado, estamos trabalhando muito mais. Sem falar nos oito mil e-mails desnecessários, reuniões inúteis e “iniciativas de criatividade”.

O horror, o horror.

É muito excesso de bagagem para carregar.

O que me resta sĂŁo banhos de ervas, sal grosso e incensos. NĂŁo acredito em nenhum desses, mas uso o terceiro para dar um cheirinho bom na casa.

Acredito mesmo é na força da vingança. E que uma das melhores vinganças é o escárnio, especialidade tupiniquim.

O humor e os memes representam o melhor do Brasil, estou convencida.

O humor nos acompanhará até o último suspiro da espécie.

Nesta semana tivemos a foto do Lula e da Janja sob a lua.

O perfil “famososemprofissoescomuns”, no Instagram, descreveu a foto da seguinte maneira:

DE MALA PRONTA: O turismo brasileiro, um dos setores que mais sofreu com a pandemia do coronavírus, já começa a ver sinais voluptuosos de recuperação. O casal Jéssica Pompeo e Basílio Monteiro, proprietários da JeBa Tour, que fica em Caetés (PE), já percebe um acentuado e visível crescimento no volume de buscas por passeios, principalmente entre casais. “As grandes viagens ainda não acontecem, mas a busca por pacotões de viagens para lugares paradisíacos e românticos já aponta para cima”, conta Basílio. O empresário garante que, durante todo o período de pandemia, se preparou para subir correndo a rampa de retomada do crescimento, prevista para ser efetivada, segundo especialistas, em outubro de 2022. “Nós sabemos que os últimos tempos foram difíceis, mas a retomada deve ser boa, com viagens de volta e picanha, linguiça, coxão duro para comemorar”, profetiza. Feliz da vida, Jessica espera que o único problema do brasileiro no futuro seja o excesso de bagagem. “Temos lidado apenas com necessaires e bolsinhas de mão com nossos clientes. Assim como eu já estou sentindo, o brasileiro também voltará a sentir a mala crescer”, profetiza. Na foto, o casal posa na Praia de Pau Grande, em Piúma, no Espírito Santo, um dos destinos oferecidos pela agência.

Duplo sentido Ă© o nome do meio do brasileiro.

Estou rindo até agora.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho