🔓 Esse janeiro cinzento…   

A certeza de que tudo acaba um dia faz com que a cronista sinta cada vez mais vontade de ficar consigo mesma
Ilustração: Eduardo Souza
06/02/2022

Uma das frases de Clarice Lispector que eu mais acho genial é a que diz: quando morrer vou ter saudade de mim, algo assim, escrito em A hora da estrela. De uns tempos para cá, depois que a pandemia deixou a morte mais perto de todo mundo, e incentivada por esse verão cinzento, passei a refletir sobre minha passagem pelo mundo como algo que vai acabar um dia — o pensamento sobre a morte é sempre adiado em nome da rotina com filhos, agendas e trabalho, mas de repente, quando a vida assusta, os problemas se avolumam e o ao redor se mostra sinistro, com tantos desabamentos de toda a sorte, é inevitável pensar que não só os outros passam pela gente, mas a gente também passa pelos outros. E morre.

Aí me peguei imaginando a falta que eu talvez deixe nas minhas filhas e em como elas se lembrarão de mim, como alguém que fez tudo o que pôde para ajudá-las a se colocar de pé diante da vida. Acho que nada deixa uma mãe mais feliz do que perceber que os filhos serão capazes de enfrentar a vida de espinha ereta — será que vou conseguir?

Comecei a andar pela casa, imaginando a minha ausência, pensando que a planta que eu comprei para a varanda vai crescer e pode virar uma quase árvore, vai dar sombra. e os que vierem depois talvez não se lembrem de regá-la — por favor, não deixem minha planta morrer também.

Não tem nada de sombrio nos meus pensamentos. São apenas reais, pois um dia não estarei mais na cozinha arrumando os pratos ou separando os lençóis para lavar ou no balanço lendo os jornais. A casa viverá sem mim, vocês viverão sem mim, minhas filhas viverão sem mim e tudo vai seguir seu curso. Talvez o que seja mais dolorido não é propriamente a falta que vou fazer naqueles que continuarão vivendo, mas quem sabe a falta que eu mesmo vou sentir de mim — ou melhor, a falta que eu já sinto de mim quando penso que nem sempre estarei por aqui, olhando os barcos muito ao longe no meu pedaço preferido de mundo que é minha casa ou teclando minhas histórias.

Alguns românticos dirão que um autor tem vida estendida nos textos que vão permanecer, quiçá se espalhando em outros suportes que ainda não foram inventados, mas a verdade é que, quando eu vejo a foto com as minhas filhas nas últimas férias, sinto ainda mais saudade de mim. Da pessoa que consegui ser neste mundo perigoso e lindo ao mesmo tempo, das mensagens que deixei para elas, de tudo o que eu disse e que talvez de algum modo tenha ficado gravado — ou não.

Nesta pandemia que não acaba, em vez de eu sentir vontade reprimida do social e dos aglomerados, o que me aconteceu foi o inverso. Tenho ficado cada vez mais avarenta de mim e sentindo vontade de ficar comigo mesma para aproveitar minha presença na Terra antes que eu desapareça. Não é macabro; é uma aprendizagem real. Revejo meus textos, fotos, abro um vinho. Celebro.

Pode ser que em breve eu queira me esquecer de que tudo morre e me distraia novamente com o mundo. Por enquanto, da janela observo um tempo chuvoso, que pede a contemplação do fato de que tudo na vida passa, especialmente as pessoas, eu entre elas.

Esse janeiro cinzento…

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira e Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

Rascunho