🔓 Escuridão de muitos reflexos

Quanto menos eu me via, menos pensava em me ver, até que fui esquecendo da minha aparência
A cronista, longe de espelhos, na escuridão amazônica
20/01/2021

Há algum tempo, sem que eu tivesse planejado, tirei férias do espelho. Foi durante uma viagem para a Amazônia, com o intuito de pesquisar para o romance que estava escrevendo.

A aldeia era afastada. Três horas e meia de avião até Rio Branco, nove horas de camionete até Tarauacá, seis horas de barco até a aldeia Yawanawa de Sete Estrelas. Ou seja, um dia e uma noite me separavam de uma cidade grande. Toda uma tarde do pronto-socorro mais próximo. Se me faltasse alguma coisa, não poderia chamar o Rappi. Nessa aldeia não há internet nem telefone. O meio de comunicação mais próximo é um orelhão na comunidade vizinha – em manutenção naquele período.

Dá para imaginar a bagagem que levei. Não tão grande porque não dava, mas bem pensada. Um quebra-cabeça de utilidades em forma de mochila. Galochas. Faca. Mosquiteiro. Soro antiofídico. Lápis de presente para as crianças. Tantas coisas não-óbvias e esqueci o corriqueiro: um espelho.

Claro que não viajei para o ano de 1500, quando os portugueses invadiram o Brasil trazendo consigo a última tecnologia em narcisismo, uma placa de vidro coberta por mercúrio e estanho que refletia tudo com perfeição e fascinou os indígenas. Eu estava em 2019 e, em termos de tecnologia narcísica, os Yawanawas estavam até mais atualizados do que eu, com smartphones e câmeras novas que eles conectavam à rede no porto de São Vicente para postar suas selfies. E claro que também dispunham de espelhos mas, por questões culturais ou financeiras, em outra quantidade.

Na Sete Estrelas, todo mundo tem algum espelho em casa. Fora, no entanto, não há como se ver. Penso na minha rotina pré-pandêmica. Acordo e me vejo no espelho do quarto. Me encaro no armário do banheiro. Confiro minha roupa no veneziano da sala. Dou as costas para mim no espelho do elevador. Me observo distorcida na saída da garagem. Checo meus dentes no retrovisor do carro. Me vejo andando em direção à catraca do prédio de escritórios. Ajeito os cabelos no elevador. Em menos de duas horas: oito espelhos.

Na aldeia tudo o que eu tinha era a câmera do celular. Eu dava uma conferida no rosto pela manhã, sem muita demora, afinal é incômodo não ter onde apoiar o aparelho, especialmente quando suas mãos estão mais interessadas em prender os cabelos ou enxaguar a pasta da boca. Tão incômodo que, depois de uns dias, acabei desencanando. Comecei a pentear os cabelos sem ver como estavam. A alinhar as sobrancelhas tateando seu próprio desenho. A não passar batom. E, quanto menos eu me via, menos pensava em me ver, até que fui esquecendo da minha aparência.

E como foi bom esquecer da minha aparência. Quando o reflexo se cala, calam-se os julgamentos. Aquilo que a civilização Tolteca chamava de mitote, a polifonia de vozes na cabeça. Por mais que eu tenha lido uma pilha de livros feministas e tentado sufocar algumas vozes castradoras com o travesseiro, elas continuam lá, lembrando-me de que estou envelhecendo, de que guardo a minha angústia em forma de gordura na barriga, de que dei azar por puxar o bigode chinês do meu pai. Ainda que eu fosse uma modelo, totalmente encaixada no padrão de beleza exaustivo que vinga por aí, o mitote trinaria seu chicotinho, nem que fosse para dizer que não sei espalhar o protetor solar. E mesmo que eu me prendesse só aos sopranos do enaltecimento, ouvindo como estava bonita com a pele descansada, eu ainda estaria: em mim, em mim, em mim. Não sou inocente de achar que suprimi a vaidade. Aliás, para que suprimir, se a dita cuja, quando não desmedida, é saudável? O que fiz foi selecionar o eixo de observação, me vendo através do outro. E não foi nada mau só me ver dessa forma por um tempo, já que a voz de terceiros costuma ser muito mais generosa do que as nossas.

Outra coisa que reparei foi na mudança de significado dos acessórios. Antes de ir embora, fui comprar uma pulseira de miçangas, uma coisa que todos os Yawanawas costumam usar. Normalmente iria provar a peça, vendo qual cor ou desenho ficaria bem em mim mas, nesse ponto, mim já estava na sombra da minha mente, roncando numa rede. Escolhi a pulseira pelo seu significado, optando pelo padrão de serpente, nas cores dos Yawanawas. Sem querer, dei outra dimensão ao acessório, transformando-o no que muitos chamam de objeto de poder. Algo que nunca vai ser descartado por não combinar com a roupa ou sair da moda.

Claro que férias não são para sempre e, na volta, Narciso retornou ao trabalho com energia total. Mas agora a voz que está aqui nesse texto também está lá no mitote e, às vezes, fala alto na frente do espelho.

Giovana Madalosso

Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.

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