🔓 Entre a couve e a cuíca

Decido que não permitirei que o genocida ganhe, o verme não vai tirar de mim a alegria, então coloco uma música para tocar e, enquanto lavo a couve, canto
Ilustração: Oliver Quinto
01/07/2021

Recebi minhas férias e fiz o quê? Isso mesmo: comprei um computador novo para trabalhar melhor. O capitalismo levou embora o meu último suspiro de pensamento, liberdade e coerência. Em minha defesa, comprei também algumas garrafas de vinho. Pronto, o dinheiro acabou. Essa mega-sena que não chega, porca miséria.

O mais triste de tudo é a consciência de que sou privilegiada. De que estou numa fatia pequena demais. De que… todo o resto que vocês já sabem. A miséria da fome, a miséria da educação, a miséria social, a miséria de governo. Estou cansada, muito cansada disso tudo. Sim, eu sei, você também.

Queria saber cantar para mandar a tristeza embora.

Estou desenvolvendo uma síndrome dessas malucas. Como aquelas alimentares, dos pobres coitados que não podem comer chocolate, algo assim. A minha não é alimentar, mas visual. Toda vez que vejo uma foto ou um vídeo do genocida tenho ânsia de vômito.

Cada luto, cada um desses mais de quinhentos mil lutos, cada luto dói em mim. É uma dor de ferida aberta. Um soco forte, uma agressão. Tenho me esforçado muito para controlar a raiva. Não pelo destinatário da raiva, veja bem, mas porque ódio faz mal ao emissor também.

A máscara não é suficiente para esconder as olheiras e rugas do implacável espelho do elevador. O espelho reflete não a minha imagem, mas o cansaço de 86% dos brasileiros. Ao menos estou em boa companhia.

Recolho todas as energias que ainda me restam e me arrasto até o hortifruti. Filho pediu suco de laranja. Sim, sou dessas.

Mercado vazio. Um ou outro gato pingado. Nos reconhecemos por trás das máscaras como brothers in arms. Exaustos, todos.

Um senhor ficou uns bons gordos minutos comparando preço de macarrão.

Passa por mim um carrinho que era só cerveja. Olho para quem o empurra na esperança de encontrar aquele olhar de contentamento de quem prepara um bom churrasco. Encontro um desiludido, um olhar baixo, sofrido.

Não tem fila para a carne. Ninguém mais compra carne.

Pego o meu tofu. Sim, sou dessas.

Meu celular vibra. Me contam de um professor que foi demitido. Mal o conheço. Tive dificuldade em reconhecer o nome, mas dói do mesmo jeito.

Subo com as compras. Incrível como laranja pesa.

Passo pelo andar do vizinho maconheiro e escuto um sambinha. Nesse instante, decido que não permitirei que o genocida ganhe. O verme não vai tirar de mim a alegria que sempre me pertenceu.

Coloco uma música para tocar no celular e, enquanto lavo a couve, canto.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho