🔓 Dizer adeus

Há quem prefira não vivenciar separações bruscas ou mesmo lidar com protocolos de despedidas
Ilustração: Marcelo Frazão
25/12/2022

O tempo se apodera de nós. Às vezes bruto; outras, sorrateiro. Há alguns dias minha amiga Emily me comunicou a necessidade de deixar Salvador e voltar para a casa dos pais, ambos idosos, com saúde frágil, residentes numa pequena cidade do sertão da Bahia e sem nenhuma outra companhia além de um velho cão vira-latas e duas gatas com três meses de vida.

As gatinhas, segundo o pai de Emily relatou, foram enjeitadas pela mãe e encontradas num vão, entre a laje e o telhado, quando ele tentava substituir uma telha quebrada antes da chegada ruidosa das chuvas.

De nada adiantou a filha protestar contra o custo de manter mais bichos em casa, a ameaça recente do ministro da Economia de não pagar as já mirradas aposentadorias, o perigo de pegarem uma doença respiratória na idade deles, que teriam de levar os filhotes ao veterinário para vacinar e uma série de coisas do tipo. Eles batizaram as bichanas de Zelda e Nina e mantiveram sua criação do jeito que estavam acostumados a fazer desde crianças: sem “frescuras”. Enquanto pequenos, beberiam leite. Quando fossem maiores, comeriam as sobras. Sempre que Emily tocava no assunto, desligavam o telefone. Em seguida, alegavam problemas no sinal da operadora.

Por fim, lembrando-se das advertências do mestre Paulo Mendes Campos na crônica Cuidado com os velhos, de que certos cuidados e temores machucam, e que a sabedoria da velhice é não ter muito juízo, minha amiga aquietou-se. Até que um dia a mãe tropeçou numa pedra do quintal, caiu e quebrou o braço.

Na véspera da mudança, fui ajudar Emily a encaixotar os livros da sua biblioteca. No processo de esvaziar as prateleiras, limpar e acomodar os volumes nas caixas, identificando-as em ordem numérica, eu às vezes abria ao acaso o exemplar de um Armando Freitas Filho, Kátia Borges, Ana Cristina Cesar ou Noélia Ribeiro e lia a estrofe de um poema em voz alta.

Ao concluir a leitura de um Quintana, baixei o livro em silêncio para assimilar as palavras e notei que minha amiga parara seu trabalho e, em pé, encobria o rosto com uma das mãos. Fiquei preocupado. Perguntei se estava bem. Ela me respondeu que precisava de um cigarro e se dirigiu para a janela da sala.

Um pouco aturdido, continuei onde estava, pensando se teria sido uma boa ideia ter me oferecido para ajudá-la, avaliando o quanto seria difícil para ela dizer adeus a uma pessoa tão próxima quanto eu, alguém tão querido e presente em sua vida por incontáveis anos, compartilhando das mais inusitadas situações, os mais loucos sonhos.

Há quem prefira não vivenciar separações bruscas ou mesmo lidar com protocolos de despedidas. O processo de luto nunca se repete da mesma maneira para ninguém. No máximo, existem pequenos pontos de convergência, aproximações.

Recordo Jorge Amado e seu cemitério de ex-amigos. Quando um amigo se tornava inimigo ou o decepcionava, Jorge o enterrava dentro de si e o morto nem sequer tomava conhecimento de seu funeral. Não ocorriam brigas, redenções nem acertos de contas. Uma saída diplomática para o adeus.

Quando Emily retornou, sorriu para mim candidamente. Eu a abracei e disse-lhe que o afastamento não seria grande, pois nós continuaríamos a nos comunicar por telefone e uma vez por mês poderíamos visitar um ao outro.

“Eu sei, querido. Não é por isso que estou triste.”

“Do que se trata, então?”

“Estou preocupada com os passarinhos. Todo os dias eu punha água e comida para eles no batente da janela. Quando eu me for, o que será dos pobres? Haverá quem faça o mesmo?”

Ela voltou a se emocionar e os olhos se encheram de água. Eu a apertei em meus braços e pensei, é como se diz no velho provérbio: “Quem sai aos seus, nunca degenera”.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

Rascunho