🔓 De um tudo (1)

Qualquer coisa (qualquer coisa mesmo) está no YouTube e isso pode nos salvar a vida ou nos oferecer uma boa noite de sono
Ilustração: Thiago Lucas
12/07/2022

A internet tem de um tudo. O YouTube tem mais. Tudo se acha, mesmo sem qualidade, sem condição. De tudo existe um pouco. Tudo muito. Todo assunto, toda instrução, do it yourself, com ou sem ring light. Em palavra, imagem, som, vídeo e áudio, do jeito que for, de tudo há. Qualquer coisa fica fácil de achar. O filtro, se tiver, é a gente que faz. Ou nem isso. E a prova de que tudo pode estar no YouTube, que desbancou lâmpadas de cristal e enciclopédias de trinta volumes, é que procurei instruções tão díspares quanto sui generis, nos últimos tempos, e as soluções estavam sempre lá. Até quando alguém me dizia: ah, mas não deve ter isso no YouTube. E eu dizia: quer ver só?

Procuras Ăşteis
Há alguns anos, quando eu precisava tirar uma mancha da roupa, pelo de casaco, risco de disco ou lustrar um sapato, minha mãe vinha com um livro ou dois e me dizia para ler a página tal. O livro não tinha tudo, mas geralmente dava uma dica ou macete que quebrava bem o galho. Aliás, ainda tenho aqui, em algum lugar da estante, o Dicas, truques e quebra-galhos, assinado por Mary Ellen, publicado no Brasil pela Rio Gráfica em 1976. Sim, o manual era quase da minha idade, e minha mãe o brandia sempre que algum desafio esquisito aparecia em casa. No subtítulo da obra lê-se: “maneiras fáceis, rápidas e divertidas de resolver problemas caseiros”. Existia também um volume dedicado ao ambiente da cozinha. (Procurem, que ainda se acha na Estante Virtual).

Herdei esse livro. Não sei quando. Veio junto com alguma estante trazida da casa dos meus pais. Logo, ele foi sendo posto nas prateleiras dos fundos ou de baixo, até desaparecer das minhas vistas. Sei que está aqui, em algum canto, e isso me dá segurança para viver a vida cotidiana. Mas meu material de apoio mesmo, hoje em dia, é o YouTube. É nele que encontro as dicas, os truques, os quebra-galhos e as instruções para tudo, também de maneira divertida, geralmente tosca. Mesmo que eu ria rios enquanto assisto aos vídeos, logo passo à prática e a situação de fato se resolve. Vejamos.

Procura recente
Comprei um relógio e despertador digital, a pilha, bem vagabundo, numa lojinha aqui do bairro. Achei caros os modelos de tomada, de boas marcas, e resolvi experimentar a tecnologia chinesa de última (categoria) geração que o vendedor da birosca me oferecia. Nem tão barato. Na caixa, muitas promessas: mostra hora, minuto, segundo, dia, mês, temperatura ambiente. Acessível: fala as horas de uma em uma. Que beleza. Nem precisava de tanto. Era só ser relógio e estaria bom. Levei.

Abri a caixa, nada de folheto de instrução. Tudo autoexplicativo. Made in China, era verdade. Pus pilhas (que não vinham junto, estava avisado). Logo, os números quadrados apareceram no visor. Só dois botões para acertar tudo: hora, minuto, dia, mês. Começou meu pesadelo. Aperta, segura, solta, aperta junto, separado, dois segundos, meio milésimo, solta correndo. Consegui. Tudo acertado. A temperatura, ele sacava sozinho. É confiar. Pus em cima da cabeceira e saí.

Quando voltei para casa, fui arranjar lanche, pôr água no filtro, lavar as mãos, não necessariamente nessa ordem. De repente, uma voz feminina bem alta, meio metálica e abafada, sem que eu pedisse e até me dando um sustinho, me informa as horas redondas: oito horas. E assim fez, incansavelmente, até as duas, três, quatro da matina. Como calar essa mulher, my god? Aperta botão, segura, firma, solta, trisca rapidinho, cutuca, nada. Atrapalhei as horas, os dias, os meses, e a mulher continuava pronta para dizer as horas eternamente, inclusive no meio da madrugada. Como resolver uma treta dessas, sem lançar o relógio novo pela janela? Ou sem tirar as pilhas, calando-o para sempre? A resposta estava bem diante de mim: o YouTube.

A solução, pois
É claro que não foi assim tão fácil. O namorado, desesperançoso com a vida, duvidou: quem teria falado sobre um relógio besta desses na internet? A resposta era óbvia: alguém. Sempre tem alguém. Nunca estamos sós. Alguém teve problema semelhante, alguém ficou sem dormir, alguém resolveu ajudar a humanidade, alguém se deu ao trabalho de gravar um vídeo e postar num canal uma informação utilíssima sobre como emudecer uma voz infernal que fala as horas a intervalos regulares, dentro de um relógio vagabundo.

Estava lá o cabra, com sua filmagem possível, explicando para uma ávida audiência assíncrona como fazer aquela voz desaparecer. Não era mágica, não era feitiçaria, era questão de segurar os botões na ordem certa e plim! O relógio virou só relógio de ler. E assim fomos felizes em nossa noite de sono. Tudo porque o YouTube está aí. E as pessoas que querem ensinar qualquer coisa sempre estão por lá.

No próximo texto, vou reunir uma pequena série de aprendizagens recentes sobre coisas nada a ver que estão no YouTube, coisas que eu quis fazer, ainda sem rumo, e que resolvi assistindo a três ou quatro vídeos no YT, sem sair de casa, sem pagar nada e, não raro, rindo pacas. Darei destaque ao amadorismo simpático de alguns vídeos, à boa vontade dos/as professores/as e ao resultado da minha façanha, depois de comprovar que as dicas e truques funcionam. Apertem o sininho, curtam o canal.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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