🔓 Cativeiro no palácio

A tristeza e o sofrimento das muitas obras de arte que convivem com a sujeira de declarações execráveis deste governo do absurdo
Meteoro, obra de Bruno Giorgi
27/02/2021

Admito um aperto no peito toda vez que aparece um quadro na parede ao fundo dos pronunciamentos oficiais. É como ver um sequestrado em cativeiro na espera aflita do resgate que o liberte. Aguente firme, Mabe. Confie em seus orixás, Djanira.

Vocês que não podem fugir do Palácio do Itamaraty, vocês obrigados a servir de cenário para declarações descaradamente falsas, vocês fadados a se impregnar da sujeira sussurrada a portas fechadas, cumulando mofo e craquelado além de pó: por favor não desistam, camaradas, não se desfaçam, não se matem.

Feliz de você, Maria Martins, que ainda pode respirar brilhante na varanda, na retaguarda do espírito de Burle Marx. Traz também algum consolo o meteoro de Bruno Giorgi no espelho d’água, senão vingador, quase livre dos ares azedos do Palácio.

Serão lavadas dos tilintares de copos e porcas risadas todas as suas tapeçarias nas paredes, Nicola. E não, não desista de seus encantos, Fayga, nem de sua fina elegância: esse ambiente um dia há de se despoluir. Confie na essência da metamorfose de sua obra, Weissmann.

Esses milhares de sapatos de péssimos caminhos um dia passarão e vocês não terão passado, acreditem. Quando chegar a equipe dos restauradores, a limpeza há de surtir tão bom efeito quanto a melhor das benzedeiras. Alguém ainda duvida que vocês sofrem? Não percebem a angústia suspensa nessas salas? Eu percebo e me envergonho. Me envergonho redondamente.

Mas tenham ainda alguma paciência, se puderem. Um dia hão de mudar os inquilinos dessa casa, o resgate necessário há de chegar. Sossegue, Volpi. Quem sabe ainda surjam motivos para enchermos as ruas com suas bandeirinhas coloridas, ou ao menos faça algum sentido a aparição de Dom Bosco não se ter desbotado completamente num dos corredores do Palácio.

Sofro com vocês enquanto isso, suportando a tortura prolongada em cada relance de suas obras cativas dos pronunciamentos públicos. Quase lhes peço desculpas pela exposição indigna, desculpas pelo dia-a-dia nessa esplanada inescapável. Sofro e resisto com vocês, reféns desesperados.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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