🔓 A volta da Loura do Banheiro

Uma mulher sai de Paris num caixão para assombrar o imaginário estudantil Brasil afora
Ilustração: Oliver Quinto
01/06/2022

No colégio Nossa Senhora da Piedade, ali pelo começo dos anos 1980, os meninos só iam ao banheiro em grupo. Não, não pense em meinha, troca-troca e que tais. Era por medo mesmo. Quem fosse sozinho corria o risco de encontrar a temida Loura do Banheiro, com seu vestido branco, a boca vazando sangue e chumaços de algodão nas narinas. Ela aparecia caso déssemos descarga, chutássemos a privada, falássemos palavrão ou batêssemos a porta do sanitário. Todos conhecíamos os códigos.

Cheguei a imaginar que a mítica figura pertencia ao passado de homens e mulheres hoje quase cinquentões. Que nada. Ontem mesmo a mãe de Lia me telefonou para informar que, no colégio da nossa filha, o mito da Loura chegou chegando. As crianças do primeiro ano andam apavoradas. Até em casa temem fazer número um — ou, pior, número dois — sem companhia. Não basta ser pai, tem que participar, já diz o bordão.

Muitas lendas urbanas como essa aos poucos ganham versões distintas, dependendo do lugar ou da época. No caso da Loura do Banheiro, há uma origem comum — e catalogada.

Sua gênese vem de uma história que efetivamente aconteceu, perto do fim do século 19, na cidade paulista de Guaratinguetá. Aos 14 anos, a menina Maria Augusta de Oliveira Borges fora obrigada pelo pai, o Visconde de Guaratinguetá, a se casar com o conselheiro Dutra Rodrigues. Ele tinha 35.

Quatro anos depois, Maria Augusta conseguiu escapar da prisão matrimonial. Vendeu suas joias e fugiu para Paris. Morreria por lá, aos 26, por motivo nunca revelado. Alguns especulam que teria sido de raiva, doença que se alastrou pela Europa naquela temporada. O que se sabe é que, no traslado do corpo para o Brasil, o caixão foi violado por criminosos. Buscavam objetos de valor da jovem falecida, mas ainda nobre.

Já na cidade natal, seu cadáver ficou exposto em um dos cômodos da mansão da família, dentro de uma redoma de vidro. Como o túmulo demorava a ficar pronto, a mãe chegou a cogitar não fazer o enterro. Acabou, porém, topando o sepultamento.

O tempo se passou, a casa do clã foi vendida e transformada em escola pública. Que, passada pouco mais de uma década, seria destruída por um incêndio. Testemunhas do acidente contaram que, enquanto as chamas consumiam o imóvel, o som de um piano era ouvido. Instrumento que Maria Augusta dominava como poucos.

Não demorou até que começasse a correr o papo de que seu espírito continuava a circular pelos corredores, abrindo as torneiras dos banheiros para matar a sede — a desidratação é uma das consequências da raiva — e suplicando aos vivos que enfim a enterrem. Ainda que o sepultamento tenha efetivamente acontecido. “Publique-se a lenda”, recomendaria Dutton Peabody, o jornalista notabilizado por John Ford no filme O homem que matou o facínora.

A Escola Estadual Conselheiro Rodrigues Alves funciona em Guaratinguetá até hoje. E o espírito da Loura do Banheiro, se um dia andou mesmo por lá, parece ter gostado do ambiente estudantil. Espalhou-se pelos colégios do Brasil inteiro, para infortúnio das crianças.

As compleições físicas são as mesmas, mas a evocação mudou. Agora, contam as meninas do primeiro ano, o espírito sai do espelho quando são pronunciadas algumas palavras específicas. E, ao chegar, pede: “Me salvem!”.

Expliquei à Lia que o fantasma da Loura não existe. “Eu sei. Mas às vezes a gente sabe que uma coisa não existe e ainda assim tem medo”, ela respondeu. Por via das dúvidas, melhor não mexer com quem está quieto.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (PrĂŞmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (PrĂŞmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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