🔓 A boca

Uma visita à dentista – sempre às voltas com algum incômodo – reforça os sentimentos e alegrias que a boca nos proporciona o tempo todo
Ilustração: Juliano Soares
16/12/2021

Discordo de quem acha que o ginecologista e o urologista sĂŁo os profissionais da saĂşde que atuam no campo mais Ă­ntimo do nosso corpo.

É o dentista.

Pela boca passam sussurros de amor, gritos de angĂşstia, grunhidos de Ăłdio.

Na boca residem sabores, dissabores, o gosto da bile.

É nessa cavidade que ecoa o pensamento e o sexo.

É na boca onde nasce e morre um sorriso.

E Ă© ela que saliva com desejo.

Não há nada mais íntimo que a boca.

Carlos Drummond de Andrade disse antes e melhor (Brejo das almas):

Boca: nunca te beijarei.
Boca de outro, que ris de mim,
no milĂ­metro que nos separa,
cabem todos os abismos.
Boca: se meu desejo
Ă© impotente para fechar-te,
bem sabes disto, zombas
de minha raiva inĂştil.
Boca amarga pois impossĂ­vel,
doce boca (nĂŁo provarei),
ris sem beijo para mim,
beijas outro com seriedade.

Florbela Espanca (Os versos que te fiz), melhor ainda:

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem para te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim para te oferecer
TĂŞm dolĂŞncia de veludos caros,
SĂŁo como sedas pálidas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu nĂŁo tos digo ainda.
Que a boca da mulher Ă© sempre linda
Se dentro guarda um verso que nĂŁo diz
Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E nesse beijo, Amor, que eu nĂŁo dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Para fechar a sessĂŁo poesia com chave de ouro, Pablo Neruda (Cem sonetos de amor):

Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
nĂŁo me sustenta o pĂŁo, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som líquido dos teus pés.
Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mĂŁos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amĂŞndoa.
Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas
e faminto venho e vou farejando o crepĂşsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidĂŁo de Quitratue.

E, no entanto, poucas ações médicas são tão violentas, sanguinárias e incômodas.

É em Neruda que estou pensando enquanto a dentista pratica fisting nos meus dentes. Boca aberta; olhos fechados; motorzinho ligado. Um canudo às avessas apoiado em meus lábios suga o que me restava de dignidade.

Hábil e orgulhosa, me mostra no espelho a reconstrução realizada.

Digo “Dora (seu primeiro nome) Claudel (de Camille)”. Ela sequer ensaia um sorriso e preciso explicar a piada-elogio obscura.

Muito do que digo, na vida, só funciona dentro da minha cabeça.

É uma senhora gentil. Não quero estar ali, mas gosto dela.

Vou embora resignada com metade do rosto adormecido, pensando na boca de que tenho fome.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho