Humor carioca

Flávio Carneiro comenta sua ligação com a literatura policial e a construção de "Um romance perigoso"
Flávio Carneiro, autor de “Um romance perigoso”
30/09/2017

• Os personagens Gordo e André, de Um romance perigoso, são detetives semi-amadores e bastante caricatos. André não tem escritório e trabalha na sala de estar do apartamento do Gordo, que por sua vez é um glutão, dono de sebo e apaixonado por frases de efeito. O cenário do livro é o Rio de Janeiro, uma cidade sitiada pelo calor, o que obriga os heróis a beber muita cerveja. Para completar a história, há um assassino de autores de autoajuda. Esse tom contrasta com o clima mais “sério” dos grandes clássicos do gênero. Por que escolheu esse ar cômico para o livro e seus protagonistas? Isso pode ser interpretado como uma crítica velada ao Brasil, um país em que tudo parece “meio amador”?
O humor faz parte da tradição do gênero policial. Um humor mais sutil, irônico, por exemplo, em detetives clássicos, como Poirot e o Padre Brown, de Chesterton, ou mais ácido, no romance negro, em detetives como Marlowe e Sam Spade. A série policial que venho escrevendo é um diálogo com a tradição. Diálogo, claro, que se dá às vezes por oposição — coloco o detetive como narrador e o assistente como o mais esperto da dupla, ao contrário do modelo de uma dupla como Sherlock e Watson —, às vezes por uma mudança de tom. É o que acontece em relação ao humor. Quis criar um humor mais carioca porque toda a série é, de certa forma, também uma homenagem ao Rio, a seus bairros, ruas, bares, livrarias. Confesso que não pensei em nenhuma crítica a um Brasil amador.

• O Brasil não tem muita tradição no romance policial — ainda que nosso país seja um manancial de crimes, com centenas de pessoas assassinadas diariamente. Por que ainda engatinhamos no gênero, mesmo com tanta matéria-prima?
Borges dizia que o policial não é um gênero realista. É um gênero intelectual. Há violência nos três contos de Poe que inauguram o gênero, mas ela é apenas parte de um jogo que o autor cria para o seu leitor, um jogo de leituras. E mesmo no romance negro, que surge em meio à crise americana dos anos 30, com Al Capone, máfias, contrabando, polícia corrupta, a violência não é o essencial. Pelo menos não nos bons romances da época. A meu ver, a matéria-prima do romance policial não é a violência, mas o mistério. É o mistério, o que se esconde e se mostra a cada página, e o modo como se esconde e se mostra, é isso que move o bom romance policial, independentemente de ter cenas violentas ou não. Por isso, a ficção policial não é apenas retrato da realidade, da violência cotidiana, é muito mais do que isso. É literatura, o que quer dizer: artifício. Pode até parecer real, mas é principalmente artifício. E o bom autor vai ser aquele que consegue construir bem o seu brinquedo, o seu jogo, e oferecê-lo ao leitor como se dissesse: toma, está pronto, pode brincar.

• Nos últimos anos, gêneros como a fantasia e o terror se mostraram viáveis no mercado editorial brasileiro (principalmente entre jovens leitores). Acha que o romance policial poderia encontrar também seu nicho, caso tivéssemos uma produção mais constante e robusta?
Isso tem mudado nas últimas décadas. O policial sempre foi considerado subliteratura, pela crítica e mesmo por boa parte dos próprios autores de ficção. A partir sobretudo da obra de Rubem Fonseca, o gênero tem alcançado cada vez mais adeptos no Brasil, entre leitores e também escritores, e começa a ser estudado na universidade não como literatura menor, mas como uma ficção que, sendo também entretenimento, lida com conceitos complexos, como os de culpa, certo e errado, bem e mal, etc.

• No seu livro há pouca ou quase nenhuma menção à violência do Rio de Janeiro. A trama é bastante “fechada” em si, apesar de aparecerem várias referências geográficas ao longo da narrativa. Não sentiu a necessidade de contextualizar a história com o momento atual e real vivido pela cidade?
Vejo a ficção policial como um embate entre leitores. Um erro de leitura pode ser fatal. Gosto disso, do detetive como leitor. Ou do criminoso como leitor. O serial killer de Um romance perigoso deixa sempre no local do crime alguma referência literária. Suas pistas remetem ao próprio gênero policial. É um assassino leitor, enfrentando uma dupla de detetives leitores. Não acredito que o romance policial tenha necessariamente que retratar a violência da realidade, das ruas. Como toda boa ficção, importa mais o modo de contar do que o que é contado. E é esse aspecto, o de pensar o enigma, o mistério como um texto a ser lido que está meu interesse maior no gênero. E quando falo no crime e no mistério que o envolvem como uma espécie de texto a ser lido, não me refiro apenas ao detetive, ou aos detetives — além do Gordo e do André, há outros personagens-detetives em Um romance perigoso, como a namorada do André, Ana (mais esperta que ele e o Gordo juntos), ou o Valdo Gomes, um alfaiate especialista em romances policiais, ou Heleno, ex-delegado de polícia. Quando falo do mistério como texto a ser lido, estou pensando também no leitor real, que é convidado a fazer, também ele, o papel de detetive. Mas nunca pretendi, com isso, fazer um romance de difícil leitura. Pelo contrário, meu interesse maior é que o leitor comum goste da história, que queira seguir adiante, que queira seguir os passos do André e do Gordo pelas ruas da cidade.

• Os maiores romancistas do gênero policial criaram detetives que aparecem em sequências de livros. Este já o terceiro romance em que Gordo e André são protagonistas. Por que optou por essa estratégia? Você se afeiçoou a eles? Para o criador, o que suas criaturas têm de mais interessante?
O detetive em série sempre me interessou. Se o autor consegue criar um detetive que ganhe a simpatia do leitor, é certo que este leitor vai querer novas histórias com aquele detetive. Isso é bom, o leitor meio que “adota” o detetive e vai segui-lo no romance seguinte. Mas a questão não é apenas a de criar um detetive que envolva o leitor. A questão é também a de quem vai contar a história. Minha preocupação estava na criação da dupla André e Gordo, mas também, e sobretudo, em achar o modo de narrar do André. O narrador é tudo numa obra de ficção. Histórias banais podem se transformar em romances antológicos se o autor souber construir bem o seu narrador. Tentei criar um narrador/detetive que não descarta o bom humor, mesmo em situações de perigo. E também um narrador que não se julga o dono da verdade, que, aliás, duvida que exista de fato uma única verdade para os fatos. Além disso, achei que seria bacana criar uma dupla de grandes amigos. A amizade entre o Gordo e o André é um ingrediente fundamental na série. Eles vivem implicando um com o outro, como dois irmãos que se amam e se entendem perfeitamente.

• Você já transitou por gêneros como a ficção científica, a fantasia e o infantojuvenil. Mas hoje, depois de publicar sua trilogia policialesca (composta ainda por O livro roubado e O campeonato), sente-se um romancista policial?
Acho que sim. Já experimentei o gênero no meu primeiro livro, Da matriz ao beco e depois, que traz um longo conto, Tardes de verão, que considero uma novela policial. E em A distância das coisas também há uma investigação (um menino de 14 anos recebe a notícia da morte da mãe e não acredita, acha que estão mentindo para ele, e vai investigar). A ilha e A confissão não têm detetives, mas há um mistério conduzindo toda a trama, mistério que, nesses casos, caberá ao leitor decifrar.

• Com todas as referências que aparecem nos seus livros, obviamente que você é um assíduo leitor de literatura policial. Quem são os autores do gênero que fazem sua cabeça?
Poe, Chesterton, Conan Doyle, David Goodis, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Rubem Fonseca, dentre outros.

• Um dos capítulos de Um romance perigoso é aberto com a pergunta: “O que leva um escritor a parar de escrever?” — uma pergunta retórica que faz alusão a Dashiell Hammett, escritor que abandonou a escrita depois do sucesso e que é parte da trama que você escreveu. Já sentiu vontade de parar de escrever (ou, pelo menos, de publicar)?
Já. Mas passou (risos). Escrever nem sempre é uma coisa tranquila. Na verdade, na maior parte do tempo não é. Você fica sempre muito sozinho (eu, pelo menos fico, e não gosto de mostrar a ninguém trechos do que estou escrevendo, só mostro quando tenho pelo menos uma primeira versão completa), é um exercício demorado (levei oito anos escrevendo A confissão, por exemplo), você muitas vezes hesita, não sabe que rumo tomar (mesmo quando já tem todo o roteiro traçado). E é preciso jogar muita coisa fora. Às vezes você se apega a um personagem, uma cena, ou mesmo uma frase, e nada disso cabe no romance, é preciso jogar fora ou guardar para uma outra história. Realmente, tem hora que dá vontade de parar tudo e ir jogar bola. Mas não sei, sempre acabei voltando para o texto, terminando o texto que comecei a escrever. Uma vez um garoto, numa escola, me perguntou quando foi que comecei a escrever. Respondi. Ele então emendou outra pergunta: e quando vai parar? Essa eu não soube responder.

>>> LEIA resenha de Um romance perigoso

Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

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