Rio noir

Alberto Mussa e Flávio Carneiro, de maneiras distintas, mergulham em crimes e injetam novo ânimo na literatura policial brasileira
Ilustração: Tereza Yamashita
30/09/2017

Matéria-prima farta, mas ainda pouco explorada pelos escritores brasileiros, o crime é o motor das narrativas em A hipótese humana, de Alberto Mussa, e Um romance perigoso, de Flávio Carneiro. Romances de autores da cena literária carioca que, mesmo sem uma ligação direta com o presente nebuloso e caótico vivido pelo Rio de Janeiro, dialogam com a história da cidade, cada um à sua maneira.

Quarta parte do Compêndio mítico do Rio de Janeiro, série de cinco romances policiais passados no Rio (um para cada século da História da cidade), A hipótese humana oferece uma perspectiva interessante sobre a arquitetura, a cultura e as subculturas que ajudaram a moldar a sociedade carioca de hoje. O livro traz os elementos que acompanham, desde sempre, a literatura de Alberto Mussa: mitologia, história, sincretismo e cultura ameríndia.

A narrativa, passada em 1854, trata de um misterioso crime que assombra o então bucólico bairro do Catumbi. Uma mulher (Domitila) é assassinada a tiros na biblioteca de casa, onde foi alojada pelo pai (Francisco Eugênio) e pelo marido (José Higino) por ser infiel no casamento. Para tentar desvendar o misterioso assassinato, é convocado pelo pai da moça Tito Gualberto, primo e amante da vítima. É ele o último a vê-la antes de morrer.

Apesar de Domitila estar no centro da trama, é Tito o personagem mais instigante do livro. “Capoeira”, vive imerso no submundo carioca e é uma espécie de miliciano a serviço da polícia da Corte, por isso é “contratado” para investigar o caso. O personagem transita com desenvoltura tanto pela senzala quanto pela casa grande. É por meio de suas aventuras que o leitor passeia pela sociedade carioca oitocentista.

Uma das principais qualidade dos romances de Alberto Mussa é transformar o conhecimento acumulado do autor sobre o passado e os mitos brasileiros em prosa fluente e acessível. Mais ou menos como Borges regurgitou a metafísica nos contos de filiação fantástica presentes em Ficções. Mussa demonstra uma rara “liga” entre inteligência e imaginação — porque literatura, para além da linguagem, sempre será contar uma história interessante. É o que faz o escritor carioca.

No plano das narrativas policiais, Mussa utiliza a célebre estratégia de inserir o leitor no diálogo sobre a trama, “conversando” com ele sobre os prováveis desdobramentos que podem levar à solução do crime. O narrador onisciente, por sua vez, é um membro da aristocrática família de Francisco Eugênio, cuja identidade o leitor não fica sabendo. Um enigma subliminar que, segundo Mussa, é parte da tentativa de “‘despsicologizar’ o romance, sair da mente das personagens e dar ênfase à narração propriamente dita. O jogo, ou pacto, entre leitor e narrador fica, então, completamente aberto, é franco, sem dissimulação”.

Romance metanarrativo
Se Mussa chama o leitor para um diálogo aberto em A hipótese humana, a conversa de Flávio Carneiro com quem lê Um romance perigoso é de outra natureza. Ele utiliza-se da tradição da ficção policial, de referências a célebres autores — Dashiell Hammett, Raymond Chandler, entre outros —, para construir uma trama que desde a escolha dos crimes — assassinatos de escritores de autoajuda — já denota uma predileção pelo picaresco. Cômicos também são os heróis do romance: André e Gordo (dupla em sua terceira incursão em romances do autor), investigadores pouco profissionais, mas que ainda assim tentam levar a sério o ofício. Eles são atraídos por uma polpuda recompensa oferecida a quem achar o assassino de Epifânio de Moraes Netto, o primeiro dos autores a entrar na mira do serial killer.

Como nos melhores romances policiais, as circunstâncias do crime são em si um manancial de pistas. Encontrado no quarto de um hotel de luxo em São Conrado, zona Sul do Rio de Janeiro, Epifânio está estirado no chão, de bruços, e no rosto um leve sorriso — o famoso risus sardonicus, resultado de uma dose letal de estricnina. Junto ao corpo um exemplar de A irmãzinha, romance de Hammett. Diante dessa sinopse, não há como não puxar pela memória as deliciosas excentricidades dos romances de Rubem Fonseca, a exemplo do sapo de Bufo & Spallanzani e outras sacadas célebres do romancista mineiro-carioca.

Se inicialmente o romance instiga pela inusitada trama — afinal, o que de tão errado os autores de autoajuda fizeram para merecer esse fim, além de cometer péssima literatura? —, no desenrolar da narrativa são os personagens que ganham o leitor. André é um homem às voltas com a própria existência e fascinado pelo álcool, que parece animá-lo tanto quanto os romances que lê. Gordo é uma espécie Sancho Pança às avessas, pois apesar de aparentemente mais relaxado, tem feeling mais apurado do que André, de quem é “assistente”. Na galeria de tipos de Flávio Carneiro, há ainda espaço para um alfaiate (Valdo Gomes) que presta consultoria informal aos investigadores, além de Heleno, ex-delegado de polícia e palpiteiro profissional.

Todos esses personagens, de alguma forma, estão inseridos no universo da ficção policial (Gordo decora frases de seus autores preferidos), o que faz de Um romance perigoso um mergulho no gênero. “Vejo a ficção policial como um embate entre leitores. Um erro de leitura pode ser fatal. Gosto disso, do detetive como leitor. Ou do criminoso como leitor”, diz o autor.

Diferentes, mas ainda assim com vários pontos de ligação, A hipótese humana e Um romance perigoso dão novo ânimo a um gênero com produção historicamente dispersa no Brasil. Em entrevista ao Rascunho, Mussa e Carneiro falam sobre como construíram os andaimes que sustem seus livros e trazem para o leitor algumas reflexões sobre o romance policial.

>>> LEIA entrevista com Alberto Mussa

>>> LEIA entrevista com Flávio Carneiro

A hipótese humana
Alberto Mussa
Record
175 págs.
Um romance perigoso
Flávio Carneiro
Rocco
285 págs.
Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

Rascunho