Octavia Butler viaja no tempo

As paixões juvenis e o lamento que desperta novamente a vontade de viajar no tempo
Ilustração: Thiago Lucas
04/08/2023

Aos dezesseis anos, tive uma paixão póstuma por John Lennon. Quando ouvia os discos, sentia-o perto de mim. Seria capaz de voltar no tempo e salvá-lo antes do assassinato. Ele teria cinquenta e dois anos. Poderíamos nos amar. Não me ocorria que era magrelo, e provavelmente preferia mulheres menores que eu.

Meus romances adolescentes foram intensos, com detalhes e cores, na minha mente. Amores imaginários me formaram como escritora.

À noite, na cama, de olhos fechados, eu visualizava as cenas. Primeiro um local: onde eu estava, o que fazia ali? E o objeto da minha paixão, por que aparecia? Precisava ser verossímil, ou não me satisfazia. Uma conversa evoluía até um beijo, mas apenas se fosse realista. Nenhuma declaração de amor mirabolante. Nenhuma reviravolta surpreendente. Para conquistar um beijo imaginário, a coisa toda tinha que ser plausível.

Tornei-me hábil em imaginar tais histórias, com colegas de escola, professores. Às vezes a novela se prolongava por várias noites. Na terça-feira, eu imaginava o início do encontro. Na quarta-feira, prosseguia de onde tinha parado. As cenas eram tão verdadeiras que substituíam satisfatoriamente os amores reais. A leitura de Em algum lugar do passado, de Richard Matheson (o mesmo autor de Eu sou Lenda), me ensinou a viajar no tempo através do autoconvencimento. John Lennon viveu meses dentro de mim.

O que nós falamos, o que fizemos, já não lembro. Sei que nos amamos em Nova York, em 1981 e 82; foi recíproco e comovente. Talvez o equilíbrio espaço-tempo entrasse em colapso se a pequena Sabina de sete anos de idade, em Curitiba, soubesse da outra Sabina adolescente beijando um compositor cinquentão na América do norte. Mas viagem no tempo não envolve telepatia, e o equilíbrio do universo foi preservado.

Escrevi esse preâmbulo para falar de meu amor por Octavia Butler. Que morreu em 2006, aos 58 anos. Era uma mulher alta como eu: 1,82 metro. Aos vinte e oito anos de idade, foi ao Centro de Gays e Lésbicas de Los Angeles, buscando testar sua inclinação homoafetiva. Sentiu-se deslocada e escreveu em seu diário: por sua aparência, “o fardo da atitude masculina” caberia a ela. Era tímida. Um peso insustentável, e ela desistiu.

Às vezes se imaginava como homem. Na Parábola do semeador, a personagem Lauren Olamina viaja portando-se assim. Tem “peito e quadril de homem”, mas não tem “cara de homem”.

O escritor E. Alex Jung escreveu sobre a frustração de Butler na comunidade lésbica. Lamentou: “Se ao menos ela tivesse uma amiga para guiá-la”. Esse lamento me enche de compaixão, e me desperta (novamente) a vontade de viajar no tempo.

Octavia Butler sabia viajar.

Por hoje, a crônica já está longa. Na próxima semana, continuo.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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