A garota da megalivraria

A troca de mensagens com uma ávida leitora enquanto a vida segue seu ritmo feito uma montanha-russa
Ilustração: Kleverson Mariano
09/06/2023

Faz quase vinte anos que saiu meu primeiro livro. Eu tinha um blog na época. Recebi a mensagem de uma leitora de dezoito anos, que leu a história de uma vez só, sem comprar o livro, na poltrona de uma megalivraria. Dizia que foi um grande impacto, e queria que eu soubesse; não acreditava que eu responderia. Mas, se respondesse, ela gostaria de saber se aquilo tudo tinha mesmo acontecido comigo.

Respondi. Que ficara muito feliz com a mensagem tão sincera e intensa. Não lembro como escapei à saia justa da pergunta: É você mesma? É autobiográfico? Aos trinta anos, era menor meu repertório de frases espertinhas pra driblar essa questão.

Hoje eu diria: É tão autobiográfico quanto qualquer outro livro de ficção. Ou: Algumas linhas talvez sejam autobiográficas, mas não lembro quais são. Ou: Minha mãe acredita que é.

Continuei em contato com minha jovem leitora. Eu não era tão mais velha que ela, e já andava nostálgica dos tempos em que lia com tanta avidez, a ponto de sentir a urgência de contato com autores.

Não lembro quantas mensagens trocamos, nem com qual frequência. A certo ponto, ela teve dificuldades financeiras e voltou para a casa da mãe, em outro estado. Abandonou uma faculdade, matriculou-se em outra. Sumiu, reapareceu.

Eu também tive meus altos e baixos e, num desses picos (alto ou baixo?), as mensagens dela me serviam de âncora, uma ligação às esperanças de juventude, que eu acreditava perder. Nessa época ela editava, com amigos, uma revista cultural amadora. Dei uma entrevista. Ela me enviou um exemplar (feito em máquina de xerox). Ficou legal — é só o que lembro.

Voltou pra São Paulo. Tornou-se jornalista.

Levou quase sete anos para eu publicar meu segundo livro. Deprimida, mal divulguei o lançamento. Estou meio confusa nas datas, agora. Não tenho certeza se no segundo livro ela já tinha voltado à cidade.

Lancei mais dois — agora sim, eu já tivera alta da terapia, e ela com certeza morava em São Paulo. Dois lançamentos, com intervalo de dois anos. Nas duas vezes a convidei. Ela respondeu entusiasmada, mas não foi.

A mãe dela morreu.

Ela casou. Teve um filho.

Mudou-se para um apartamento — vi a foto (uma janela com o horizonte de prédios ao fundo) numa rede social.

Lancei mais um livro, e desisti de convidá-la.

Se ela ler esta crônica, saberá finalmente o que é autobiográfico, o que não é.

As megalivrarias, na cidade, quase não existem mais.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho