Que horas são?

Um sujeito, talvez saído de “Alice no País das Maravilhas”, anda apressado pelas ruas de São Paulo, preocupadíssimo com o horário
Ilustração: José Lucas Queiroz
17/03/2025

A primeira vez foi normal. Passou por mim apressado, na minha rua, um pouco acima do meu prédio, e indicando o próprio punho com o indicador, repetindo o gesto em pequenos e aflitos movimentos, quis saber:

— Que horas são?

Respondi-lhe. Passou por mim sério, apressado. Calculei que ia atrasado.

Dois ou três dias depois, na avenida central do bairro, nos cruzamos de novo. Assim que demos um pelo outro repetiu:

— Que horas são?

Lembrei-me do Coelho Branco, responsável pelo envio de Alice para a toca, faltava-lhe apenas, e por isso os questionamentos, o enorme relógio. Meu vizinho de redondezas nervoso e confuso.

Informei, já agora estranhando. O indivíduo fazia a pergunta imperativamente, muito sério, sem contato visual, como se eu tivesse a obrigação de informar. Não agradecia a resposta. Agoniado e preocupado com o tempo. Só lhe faltava a frase, quase bordão da querida personagem de Lewis Carroll:

— Está tarde, tenho pressa!

Ontem o percebi antecipadamente. Agastado atravessei a rua, não desejava ter contato com aquela figura estranha, para mim começando a criar contornos assustadores. Gritou-me do outro lado da calçada:

— Que horas são?

Fingi que não ouvi. O que seria aquilo? Algum tipo de patologia certamente. Transtorno obsessivo compulsivo. O mundo moderno cria nas pessoas diferentes urgências, e eu ainda não me havia deparado com alguém tão preocupado com os compromissos a ponto de circular querendo saber constantemente o horário.

Ou seria comigo? Vontade doentia de fazer contato com alguém, comunicar-se, o sujeito talvez fosse apenas mais um solitário. Quem sabe via na repetida pergunta chance de estabelecer diálogo com alguém, mudar a rotina?

Eu hoje seguia circulando cabisbaixo, cuidando para não emporcalhar os sapatos com as necessidades dos cães, quando ouvi:

— Que horas são?

Era ele.

Informei, tentando prolongar a conversa:

— Estamos sempre precisando atender a rainha.

Olhou-me como se eu fosse louco. Devo ser mesmo.

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho