Lenço de pano

O lenço para secar as lágrimas é imprescindível nestes tempos de guerras que devastam vidas em várias partes do mundo
O conflito entre Israel e o Hamas espalha destruição e morte em Gaza
23/06/2025

Costumo carregar um lenço de pano no bolso de trás da calça. Prática antiga, minha tia-avó Helena, já falecida, conhecedora do hábito, reiteradamente me presenteava com caixas contendo três, nas datas importantes. Traziam, eu achava o máximo, a letra erre bordada, e vinham, titia nunca falhava, com as cores: branca, azul e rosa. Ainda me sobrou um deles, alvo, limpo e engomado, com a inicial floreada, na caligrafia bonita dos antigos. Sempre que lanço mão de um, em ocasiões mais ou menos frequentes de emoção, as pessoas em volta estranham. Quem usa lenço hoje em dia, meu Deus? Seria mais natural surpreenderem-se com o lacrimejar instantâneo, eu assim à flor da pele, mas é o objeto de pano que chama mais a atenção.

Os comentários, aliás, são em tais ocasiões os mais variados. Afirmam ser coisa de velho, haver pouca higiene em se armazenar aquela porcaria na algibeira, o mais saudável seria utilizar utensílios descartáveis de papel. Ofendo-me, é claro! Por que não devo manter alguma tradição em meus costumes? Já mudei tanto, aceitei novidades, modernizei-me, embora aos trancos e barrancos, sou hoje capaz de encarar o mundo estranho em que vivo sem importunar os viventes do entorno. Não custava nada haver alguma reciprocidade, respeitarem gostos inocentes trazidos de um passado que, para mim pelo menos, é recente, parece ter sido vivido ontem. Desejo poder enxugar minhas lágrimas com conforto.

E como tenho chorado!

O mundo se tornou insalubre demais. Se me distraio e abro inadvertidamente algum filme recebido no computador, entro em contato com eventos horríveis, traumatizantes, vejo o ser humano sofrendo injustiças inacreditáveis. Fico logo engasgado, com embrulhos no estômago, a dor me escorre pela face incontrolavelmente. Como ver um pai tentando acalmar um filho que chora com medo de bombas e não tremer de ódio ante o vil? Os dois aterrorizados, tudo em volta chacoalhando, clarões iluminando as janelas e estrondos assustadores. Levo logo a mão para trás, alcanço aquele que sempre esteve ali para me secar o pranto. Permaneço horas impressionadíssimo. Quem mandou ser capaz de sentir com tanta fúria a dor alheia?

Gaza.

Então vejo alguém recitando um poema do palestino Ahmad Assuq. Resultado de teclar inadvertidamente um link no celular. Na telinha surgem escritores judeus brasileiros. Eles revezam-se dizendo versos fortes e sofridos desse poeta tão jovem, apenas vinte e seis anos de luta:

Vamos colocar máscaras
Para não ter que perder
Estes rostos que já não
Reconhecemos

E constato que, embora Adorno tenha dito que a poesia não sobreviveria a Auschwitz, ela está ali sangrando meus olhos, umedecendo minhas mãos, preciso urgentemente do meu lenço.

Gaza.

Como respirar, sorrir, sentar-se à mesa para fazer refeições sabendo que há um massacre sendo realizado?

Como respirar, sorrir, sentar-se à mesa para fazer refeições sabendo que existem crianças com fome e apavoradas?

Não consigo sem meu lenço. Impossível!

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho