Belarmino

Ele caminha encurvado, jamais encara quem encontra, exibe-se enrustido, silencioso, parece querer desaparecer se dá de cara com alguém
Ilustração: FP Rodrigues
09/06/2025

Há um tempo ser tímido era apenas perfil das pessoas, os mais discretos viviam em seus mundos mais fechados, interagiam menos com os viventes do seu entorno, e ninguém punha reparo. Deixavam os pobres em paz. No meu tempo, sei que é conversa de velho, mas existiu um período em que eu era mais jovem, havia muita gente introvertida e ninguém fazia drama por causa disso. Alguns eram até famosos por serem calados, fecharem-se em copas — termo da época —, não desperdiçarem sorrisos com qualquer um. Agora é diferente. Exigem-se comportamentos mais abertos, talvez efeito do mundo digital, já que vivemos escancarados nas redes.

Uma das competências mais observadas pela turma dos recursos humanos, também conhecida como área do RH, é um troço chamado relacionamento interpessoal. Se o fulano pertencer a um grupo e ficar na sua, sem confraternizar muito com os companheiros, logo fica malvisto, estaciona profissionalmente, tem a carreira afetada por aparecer pouco, ser menos notado do que deveria. E, pior, consideram os acanhados menos inteligentes, preguiçosos, sem iniciativa, tudo por ter um temperamento mais comedido. O pessoal responsável pelas contratações nas empresas dá logo o veredito: falta liderança ao infeliz. Ele é então encostado, vê gente mais nova passar sua frente, fica triste, se encolhe ainda mais, acaba recebendo cartão vermelho, indo pregar em outra freguesia. Tudo muito triste, injusto, mas assim é. Ou o funcionário abre o verbo, pendura uma melancia no pescoço, faz umas gracinhas de vez em quando e fica bem em evidência, ou dança. Meninos, tenho experiência, trabalhei no mundo corporativo, eu vi.

Às vezes, encontramos a dificuldade citada acima caminhando pelas ruas. E como sou quase um andarilho, sei do que estou falando. É o caso do Belarmino. Ele é a pessoa em situação de rua mais conhecida aqui do bairro. Circula empurrando um carrinho de supermercado, segue coberto por trapos faça frio ou calor, recolhendo bugigangas que possa vender. Caminha encurvado, jamais encara quem encontra, exibe-se enrustido, silencioso, parece querer desaparecer se dá de cara com alguém. Caso conseguisse maior proximidade com os mais favorecidos do seu percurso, talvez tivesse a vida facilitada. Poderia aliar o trabalho de coleta ao de pedinte. Certamente, até por ser conhecido e muito pacato, despertaria compaixão nas almas embrutecidas da vizinhança conservadora, as cidades grandes infelizmente reúnem gente da pior espécie. Angariaria, tenho certeza, alguns cobres, quem sabe um prato de comida, ganharia corpo, ficaria mais corado. Mas não! Quando se cansa, encosta-se no primeiro poste disponível, ajeita a geringonça pesada de quinquilharias que arrasta rente à guia, acende um cigarrinho. Relaxa. Permanece um tempo olhando para ontem e dando baforadas. Com certeza seu maior prazer. E fica ali mudo, encabulado, tentando fazer com que o mundo suma do seu entorno.

Um dia não me contive:

— Hei, Belarmino!

Ele parou, custou a olhar para trás. Quando me viu, ficou atarantado. Não fosse a sujeira do rosto, teria se exibido rubro de vergonha. Não disse nada, ficou me olhando. Toda a timidez do mundo nele presente. Ofereci-lhe uma nota de vinte reais. Balançou a cabeça, não aceitou, embora tenha feito o possível, gaguejando, para agradecer. Tímido? Pobre também no relacionamento interpessoal, sem liderança, mas digno.

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho