Luís Carlos Prestes não era exatamente um folião. Militar e maior líder comunista brasileiro, mantinha aquela sisudez revolucionária que marcou a esquerda na primeira metade do século passado. Mas, em novembro de 1946, caiu no samba. Mais que isso: foi o destaque de um desfile temporão das escolas do Rio de Janeiro, feito em sua homenagem.
Soube dessa história, por alto, depois de um papo com meu amigo Luiz Antonio Simas. Aí fui escarafunchá-la. E descobri muitas coisas interessantes, que aqui divido com vocês.
O desfile aconteceu no dia 15 de novembro e teve como palco o Campo de São Cristóvão. Quem organizou foi a Tribuna Popular, jornal ligado ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Já havia algum tempo que a sigla buscava vencer a resistência de parte da militância a temas que eram considerados “ópios do povo”, como o futebol e o carnaval. A aproximação com a escolas de samba representava passo importante nesse sentido. Ampliar as bases, sobretudo entre negros e pobres, a partir de um convívio mais íntimo e do enaltecimento daquele que se transformava num símbolo de brasilidade.
“Na avaliação do partido, quanto mais próximo o seu contato com a cultura popular, valorizando-a e estimulando-a, maior o poder de penetração do PCB na classe operária”, explica Valéria Lima Guimarães, que dedicou sua dissertação de mestrado em História Social ao assunto. A estratégia, segundo ela, era concretizar a médio prazo o ideal comunista de conquistar o poder no Brasil, promovendo a tão almejada revolução do proletariado.
Nesse trabalho, a Tribuna Popular tinha função importante. Com oito páginas e circulação de terça a domingo, o jornal chegou a bater a marca de 50 mil exemplares diários. Trazia, em geral, textos elaborados por agências internacionais sediadas em países comunistas e reportagens locais, que focavam temas como greves e ações do movimento sindical, além da luta antifascista. Nos primeiros números, a editoria de cultura se limitara a seções voltadas ao cinema e ao teatro. Mas, dentro do plano de aproximação com os setores populares, logo surgiriam duas colunas especificamente dedicadas ao pessoal das escolas: “O povo se diverte” e “O samba na cidade”.
Os novos espaços coroavam a relação cada vez mais próxima com a União Geral das Escolas de Samba (UGES), seguindo as diretrizes do partido. A Tribuna passou a anunciar bailes, ensaios, e a dar notícias de eventos da folia promovidos pelos clubes da cidade.
Em março, mês em que se deu o carnaval de 1946, foi realizada normalmente a competição entre a escolas. Em razão do recente triunfo na Segunda Guerra Mundial, aquele ficou conhecido como o “Carnaval da Vitória”. No desfile, todos os enredos tiveram que versar sobre o assunto — e o fizeram quase sempre de forma direta, como foi o caso da campeã Portela. A última alegoria da azul e branca a passar pela Avenida Presidente Vargas trazia o Tio Sam de pé, com Adolf Hitler ajoelhado diante dele. Mais literal, impossível.
A Tribuna deu destaque ao evento, com extensas reportagens. Meses depois, anunciaria um evento de lavra própria: o tal concurso em tributo a Prestes.
A notícia ocupou a manchete da edição, o que mostra o empenho do jornal em transformar o certame num enorme sucesso. Convocação feita, os preparativos mereceriam sucessivas matérias, sempre com chamadas de capa.
A proposta do “desfile-monstro” era fazer uma evocação “viva e colorida” dos carnavais do passado — no caso, os da Praça XI —, reverenciando Prestes, a maior referência comunista do país.
Foram instituídas duas comissões, que se responsabilizariam pela organização e pelo julgamento. Ambas contavam com nomes reluzentes. Estavam lá os compositores Mário Lago, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi e Francisco Mignone, o folclorista Edson Carneiro, o arquiteto Oscar Niemeyer, e os escritores Jorge Amado, Aníbal Machado e Aparício Torelli, o Barão de Itararé. Não à toa, todos simpatizantes do Partidão.
Também integravam as comissões representantes do mundo do samba, como Paulo da Portela e Elói Antero Dias, o Mano Elói, que no ano seguinte ajudaria a fundar o Império Serrano. Entre os quesitos, chamava a atenção a então inédita avaliação da dança do casal de mestre-sala e porta-bandeira, que depois seria incorporada ao desfile oficial.
Vinte e duas escolas toparam participar. Nos meses anteriores, a Tribuna visitou a sede de várias delas, num esforço de reportagem que redundou em matérias fartamente ilustradas e cujo gancho era a expectativa com o concurso. A equipe do jornal passou por Vaz Lobo, no Salgueiro, em Irajá e Parada de Lucas, entre outros bairros. Ali estavam as bases que o partido queria conquistar.
No grande dia, embora as cinco consideradas “grandes” na época — Portela, Mangueira, Depois Eu Digo, Azul e Branco e Unidos da Tijuca — tenham ficado de fora, o desfile reuniu um escrete respeitável. Império da Tijuca, Unidos de Cabuçu, Prazer da Serrinha, Unidos de Vila Rica e Flor do Lins foram algumas das agremiações que levaram seus componentes a São Cristóvão.
“Um espetáculo magnífico, que jamais será esquecido pelos cariocas”, bradou a Tribuna no dia 16 de novembro, estimando em infladíssimas 100 mil pessoas o público presente. Entre elas, informava o jornal, estavam o cronista Rubem Braga e o dramaturgo Procópio Ferreira. O texto comentava, em timbre superlativo, a passagem das escolas e a reação dos presentes. “Paulo da Portela e Mário Lago, os dois grandes compositores populares, visivelmente emocionados, diziam: ‘Isso é uma coisa formidável! Isso é o povo sambando com o coração!”.
Compostos especialmente para o desfile, os sambas-enredo seguiam o modelo apologético então em vigor. Prestes refulgia, nas letras, como um herói da pátria. “Oh! Carlos Prestes/ Foi bem merecida a cadeira de senador/ Passou dez anos encarcerado/ Comeu o pão que o diabo amassou”, cantava o samba da Lira do Amor. Ao ver a escola passar, relata o jornal, ele ficou “com os olhos umedecidos” e levantou os braços, em saudação à rapaziada”.
Em tom igualmente laudatório, a Prazer da Serrinha saudava o “grande nome/ Cavaleiro da Esperança”, que “lutou pela liberdade” e ficará “para sempre/ na nossa lembrança”. O samba era assinado por Mano Décio da Viola, identificado na Tribuna pelo nome de batismo: Décio Antônio Carlos.
Foi a Prazer da Serrinha, aliás, que conquistou o campeonato. “Os sambistas, trajando roupas, camisas brancas e sem gravata, fizeram bonitas evoluções. As pastoras estavam vestidas de baianas e o mestre-sala, também presidente da escola, trajava uma fantasia de embaixador”, descreveu a Tribuna, único jornal a cobrir o evento, que não mereceu sequer uma nota nos demais veículos da imprensa.
A vitória significava muito para a escola, cujo melhor resultado até então havia sido um terceiro lugar em 1935. E o troféu foi entregue no dia 7 de dezembro, em festa realizada na sede da agremiação.
Não haveria outro concurso dessa natureza. Em 1947, com a eleição Eurico Gaspar Dutra para a presidência da República, o PCB teve seu registro cassado e caiu novamente na clandestinidade. A Tribuna Popular não pôde mais circular. Nesse mesmo ano, a Prefeitura do Distrito Federal assumiu a organização do desfile das escolas, assim como o julgamento. O regulamento publicado em janeiro, a menos de um mês do carnaval, impunha aos enredos a obrigação de exprimir um “motivo nacional”.
Tal exigência se tornaria ainda mais dura no ano seguinte. Na esteira da polarização trazida pela Guerra Fria, o que era “motivo nacional” virou “interesse nacional”. Foi o definitivo balde de água fria no flerte do Partidão com as escolas de samba.