Incidente infeliz

O uso equivocado de uma expressão popular causa constrangimento durante um agradável jantar
Ilustração: Marcelo Frazão
26/05/2025

Certa vez fui convidado, junto com uma prima, a jantar na casa de um importante artista plástico. Sujeito de extremo bom gosto, assim que chegamos à residência ficamos encantados com o número de objetos artísticos expostos, a beleza estava presente em cada canto, parede, estante. Coisa de se perder o fôlego ante tantas maravilhas. A conversa correu amena, afetiva, fomos um pouco mais tarde convidados à mesa. Toalha impecável, talheres de prata, copos de cristal. Tudo muito refinado. Na hora do vinho recusei:

— Não bebo.

Para provocar surpresa:

— Um Ramos que não bebe! Nunca vi.

— Sou a ovelha negra da família — respondi.

Pronto! Pude notar imediatamente o olhar magoado e, ao mesmo tempo irritado, daquele que nos recebia. Abrupta transformação, o ar ficou pesado e hostil.

— Como você ousa dizer tal frase na minha frente, diante de um preto?

Embaracei-me e, ruborizado, tentei explicar:

— A frase não discrimina. É comumente usada para dizer que somos diferentes.

Nenhum de meus argumentos adiantou. Principalmente por ter tentado, o tempo todo, justificar minha fala, defendendo-a como aceitável. Não deveria.

O silêncio ficou pesado, não houve mais conversa. Terminada a refeição fomos embora como cachorros magros. Não éramos mais bem-vindos.

Ter a consciência de ter sido considerado racista me incomodou muito.

Hoje, pensando melhor, dou razão ao meu amigo. Errei ao tentar justificar a fala. Precisaria ter me calado e tentado entender como meu disparate ecoou. Não levei em consideração que devemos sempre que possível nos colocar no lugar do outro. Se para ele foi uma ofensa, eu deveria ter me desculpado. Talvez ter dito que nossa educação é mesmo falha quando se trata de não sermos preconceituosos. E que, criados em casas brancas, com padrões muitas vezes não aceitáveis, frequentemente falhamos. Mesmo sem ter intenção. Caberia ter sido humilde naquele incidente. Caso pedisse perdão, e manifestasse meu desconhecimento do quão inapropriada era a porcaria da frase, talvez conseguisse lidar melhor com a ofensa. Ao insistir em manter posição, negando o direito alheio de sentir diferente, entornei definitivamente o caldo.

Hoje procuro ouvir e recuo se eventualmente me engano. Assim, aprendi que são indígenas, pessoas em situação de rua, deficientes visuais, portadores de síndrome de Down. E não faço gracinhas com expressões estúpidas, como já ouvi fazerem, dizendo coisas como:

— Programa de povos originários!

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho