O vento do Sudoeste

Um dia de inverno na praia traz lembranças da infância e uma sensação de que a felicidade está nas pequenas coisas
Ilustração: Eduardo Mussi
06/07/2025

Lá estava eu em mais um momento praia de inverno. Uma das melhores coisas de se viver em uma cidade que desconhece o que seja um inverno de verdade é poder ir à praia em julho. Eu só não sabia que existe o vento do Sudoeste — não sei nem onde fica o Sudoeste na praia. Aprendi isso quando cheguei e perguntei sobre o guarda-sol, e o rapaz que nos recebeu e forneceu o aluguel das cadeiras logo avisou: “Hoje não pode armar o guarda-sol porque tem o vento do Sudoeste”.

Achei um luxo ser recebida na praia por alguém que sabe onde fica o Sudoeste, de onde ele vem e como ele pode nos abater. Esse pacote cinco estrelas é um luxo cheio de requinte: sentar-se em uma cadeira, de frente para o mar, sol ameno, céu azul, sem que os guarda-sóis voem nervosos sobre nós.

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Logo quero um biscoito de polvilho — outro requinte. Vendido por ambulantes que cruzam a praia de ponta a ponta e ainda carregam mate. Só quem viveu a infância com estas referências pode avaliar o que mate com biscoito de polvilho representam. Quem me vende é o Tiago, que fez um cartão fidelidade e avisa: “Prestem bem atenção antes de comprar para terem certeza que o biscoito tá novo e veio direto da fábrica”. Se eu completar o cartão, ganho um biscoito ou um mate de graça. A gente pode chamá-lo pelo zap que ele entrega também. Não sei se a gente precisa tão mais do que isso para ser feliz.

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Quero uma garrafa de água. Faço sinal para um senhor muito velhinho, de pernas fortes, que anda com pressa e quase não vê meu aceno. Ele por fim chega e eu peço a água; ele não tem dentes. Pago em dinheiro, e ele me responde com um sinal de agradecimento, olhando para o céu como se agradecesse também ao universo por aquele momento de graça: vendeu uma água. Fico emocionada. Minhas filhas não entendem e me pedem para parar de chorar. Não acho que seja coisa da minha própria velhice que avança; sempre fui assim. Aquele vendedor me devolveu o tempo da pracinha, quando o velho que vendia doces era roubado pelas crianças ricas que faziam isso por pura maldade. A crueldade não tem classe social nem idade para se instalar. Tento suavizar os pensamentos e vejo que o velho da praia vendeu mais uma água para o rapaz ao lado — e mais uma vez repete o gesto de agradecimento ao universo.

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Chego em casa sem ter saído da praia. O resto da tarde parece como se eu ainda estivesse na cadeira de frente para o mar, protegida do vento do Sudoeste. E me lembro de aprender onde fica o Sudoeste na posição onde estou. E me lembro de levantar os olhos para o universo que eu vejo da minha varanda e agradecer por esta vida luxuosa e, sobretudo, por poder escrever, que não deixa de ser uma forma, ainda que mínima, de melhorar o mundo.

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Não sei se a gente precisa muito mais do que isso para ser feliz.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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