Leitores escreventes

Escrever com alma, para além de uma redação técnica e correta, requer um mergulho prévio de uma alma leitora
Ilustração: Marcelo Frazão
04/02/2024

Pouco antes das férias de fim de ano, vi com muita alegria a notícia de que uma das melhores redações para o Enem foi assinada por uma leitora de Clarice Lispector. Desde o começo da adolescência, ela já lia as obras da escritora, em especial os contos, e fez deles referência para o texto. Coincidentemente, precisei levar para aquelas férias que se iniciavam um livro de Clarice sobre o qual vou trabalhar. Um livro de contos, o mesmo gênero que encantou a garota nota mil.

Pensei nas inúmeras aquisições quando se aproxima de uma literatura tão perplexa quanto a de Clarice e me questionei sobre o que fez com que a estudante mergulhasse ainda tão jovem — tinha uns 13 anos quando começou a ler Clarice — em textos profundos, que exigem do leitor fôlego e disposição para sair do acomodamento. Seria a escola? O exemplo dos pais? Até que ponto o meio interfere no movimento de um leitor em busca de alimento?

Um somatório de tudo, claro, mas talvez um elemento insondável esteja por trás, pois nem sempre os alunos conseguem — ou desejam — escapar do senso comum, do trivial das redes sociais, do mais do mesmo, a fim de se lançar no desafio da leitura fora dos quadrantes óbvios. Perplexidade, delírio, descoberta de mundos, poder oculto das palavras, planície desconhecida… Estas são expressões que aleatoriamente assinalei na releitura de alguns contos de Clarice e que fazem parte do pequeno volume A bela e a fera, repleto de mulheres em luta para se libertar de situações diversas de aprisionamento à procura de uma liberdade que começa com a aquisição da palavra. De uma forma ou de outra, as personagens se debatem na tentativa de administrar o próprio discurso na direção do que realmente desejam, passando pela coragem do mergulho em suas dores e perplexidades.

Aí alguém vai dizer: que chato. Essa é a questão. Por que aquela garota nota mil acha esse mergulho atordoantemente lindo e outros tantos — a maioria — acham aborrecido? Por que ler livros da profundidade de Clarice Lispector são considerados uma raridade? Ainda vamos viver muito para descobrir.

Talvez os escreventes que brilharam nas redações tenham sido em algum momento contagiados por alguém — professores, pais ou amigos — apaixonados pela leitura antes de se tornarem capazes de escrever tão bem. Escrever com alma, para além de uma redação técnica e correta, requer um mergulho prévio de uma alma leitora. Não há como escapar da receita.

A leitura age por contágio. Só alguém contagiado pela paixão de ler (ou pelo desejo de paixão, pois muitos lares não possuem leitores por falta de oportunidade) será capaz de transmitir a paixão pelos livros. Estamos distantes dessa realidade, infelizmente. Dói saber o quanto estão perdendo os que acham escritores como Clarice aborrecidos. Um conto como Felicidade clandestina, por exemplo, deveria estar em todas as escolas do país, passando de mão em mão como um jogo de anel.

Falando em contágio, me lembrei da minha professora de português do Ensino Médio. Ela se chamava Deusiana. Eu tinha muita implicância com ela, até quando um dia ela me apresentou o plural de pôr do sol. Eu não sabia que existiam pores de sol. Achei tão bonito e deixei transparecer meu encantamento pela palavra nova. Aí ela me disse que o pequeno príncipe tinha visto mais de 40 pores de sol em sua vida… Respondi que nunca tinha lido o livro. Ela se estarreceu e disse: ah, mas então leia que você vai adorar. Apenas isso. Nenhum mandamento, nenhum julgamento, nada. Apenas um enamoramento.

Na semana seguinte, cerquei Deusiana no corredor e disse que ela tinha razão: o livro era mesmo lindo…

O que mais me emociona é quando consigo acionar algum comando nos jovens leitores e transmitir a eles um pouco da minha paixão de ler. Escrever é um domínio sobre o mundo, segundo a própria Clarice. Ninguém consegue dominar nenhum mundo — nem o interno — sem conhecimento. E a forma mais garantida de obter conhecimento é pela leitura.

Falar nisso, por onde andaria a Deusiana depois de tantos pores de sol?

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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