Levar porrada 

Ser agredida é uma das coisas mais humilhantes e indignas que podem acontecer a uma pessoa
Ilustração: Oliver Quinto
05/07/2023

As minhas avós levaram porrada dos pais e dos maridos. As mães delas também levaram porrada dos pais, dos maridos e, eventualmente, dos avós. Algumas das filhas das minhas avós também levaram porrada dos pais e dos maridos e dos avós. Existe, portanto, na minha família (e em muitas, infelizmente), uma longa linhagem de levar porrada.

Há umas décadas, o termo violência doméstica nem sequer existia. As mulheres levavam porrada e pronto. Era comer e calar porque o normal era assim. As mulheres, por vezes muito jovens, passavam directamente da casa dos pais para a dos maridos, eram entregues de um poder paternal (e paternalista) para outro. Não tinham escolha. Era assim e pronto.

No contexto da violência doméstica, a casa representa o sítio mais perigoso. O local onde a maior parte dos crimes acontece. Uma das minhas avós, por exemplo, foi agredida na sua própria cozinha com um banco na cabeça (um gesto gentil da autoria do meu avô). Outra das agressões aconteceu também na cozinha, num dia em que o meu avô tinha atestado o depósito de álcool: espetou um garfo na cabeça da minha avó. Ela teve sorte, não morreu da agressão. Os seus filhos, a minha mãe e os meus tios e tias, assistiam e faziam parte destes quadros dantescos sem arte nenhuma.

Crescer no meio de padrões negativos gera uma necessidade de se funcionar em modo contrário. Não ser violento não é normal, afinal cresce-se com esse padrão de violência; não ser agressivo é um esforço para contrariar o modelo com que se cresceu.

Mas nem só as mulheres levam porrada; também há homens a sofrer agressões no seio familiar. Alguns levaram porrada dos pais, dos avós e, mais tarde, das mulheres. E se para muitas mulheres é difícil denunciar que o marido lhes bate (afinal de contas, é suposto ser alguém que as ama e protege), para um homem é ainda mais embaraçoso e difícil denunciar que a mulher lhe bate, graças ao estigma social que coloca os homens no topo da força e da autoridade em qualquer casa de família. Por isso, a maioria dos homens vítimas de violência doméstica reage com silêncio.

Levar porrada é, provavelmente, uma das coisas mais humilhantes e indignas que podem acontecer a uma pessoa, seja homem ou mulher (e ainda mais estruturalmente destrutivo para o próprio se acontecer desde a infância). Além do terror físico da agressão, as vítimas vivem sob a custódia emocional dos seus agressores. Deixam de estar aptos para uma vida saudável sem agressão. Na nossa casa, na casa de outro familiar ou amigo, na casa de um vizinho. Fingir que não se vê, ou continuar com a cantilena de que entre marido e mulher ninguém mete a colher, já não se aguenta. Ninguém merece levar porrada, ninguém merece sofrer em silêncio. Até porque muitos destes casos terminam, como sabemos, em tragédia.

Cláudia Lucas Chéu

Nasceu em Lisboa (Portugal), em 1978. É escritora, poeta, dramaturga e argumentista. Tem mais de uma dezena de livros publicados em Portugal (poesia, dramaturgia, romance e contos). No Brasil, publicou os livros de poesia Confissão (Reformatório) e Ratazanas (Demônio Negro). Escreve para diversas publicações (jornal Público, Mensagem de Lisboa, revista Máxima, entre outras). Confissão foi semifinalista do Prêmio Oceanos em 2021.

Rascunho