Vontade de latir

O vício em café e uma repentina vontade de latir para um rio lá em Manaus
Ilustração: Thiago Lucas
10/04/2025

Outro dia vi um homem sem nariz. Era uma coisa tão carcomida que andava com um lenço o tempo todo. Vou poupá-los da escatologia. Mas o fato é que não tinha nariz. Tinha apenas um enorme buraco na cara. O meu chute é que foi cocaína, mas, felizmente, é um desconhecido e, portanto, sobre quem nada sei. Esses vícios todos, incluindo os legalizados álcool e cigarro, destroem muito mais do que narizes.

Na minha adolescência e início de vida adulta, as drogas pesadas eram comuns, mas eu felizmente era (sou) uma anta no assunto e raramente reconhecia ou entendia o que estava acontecendo à minha volta.

Eu contava muito com um amigo de infância, bem mais esperto, que me dizia: “vamos embora que está pesando”. E depois, no carro, me dando carona até em casa, contava do que se tratava.

Mas nossa, nunca imaginei que fulaninha cheirasse.

Caramba, sicrano faz isso?

Era sempre, sempre um choque pra mim.

I. me livrou de poucas e boas.

Lembro até hoje da gargalhada que ele deu quando perguntei se ecstasy era de injetar ou de cheirar.

Minha geração é um horror.

Meus alunos me informam que a moda da geração deles, agora, é questionar o consumo excessivo. Falam expressões em inglês como undercosumption core. É uma trend do TikTok. Muita coisa errada em um mesmo parágrafo, sim, eu também acho. Mas, polianamente, vejo isso com bons olhos. Tomara que a moda pegue. Sim, eu tenho consciência do que acabei de escrever.

Os assuntos são relacionados. Consumo excessivo e o uso de alteradores de consciência preenchem um vazio existencial muito parecido.

A geração Z bebe menos do que as anteriores. Do que a minha, certamente. Empiricamente, noto que os jovens estão muito mais saudáveis. É, cheguei em uma fase da vida onde posso usar “jovens” assim, de maneira distante, vistos daqui da minha cadeira de balanço.

O vício em café é meu companheiro de décadas. Não vou aqui bancar a cheirosa, não. É algo bem menos destrutivo que outras drogas, mas ainda é um vício. Nina conhece todas as padocas que permitem cachorros em um raio de alguns quilômetros. Ela aprova meu vício em café porque alimenta o dela em pão de queijo.

De viagem marcada a um congresso em Manaus, já sonho com as comidas diferentes. Organizei todo o tempo livre em função do que experimentar. E, claro, vou começar pelo café. Prioridades.

Pulo do café amazonense para o sorvete de cupuaçu com enorme facilidade.

Fui informada que existe também um lugar de lasanha não muito canônico. Você fala o que gosta. Aí eles trazem uma lasanha surpresa e se você não gostar, não paga. Todo o conceito envolvendo uma comida surpresa me fascina.

Também já estão na lista matrinxã assado, farinha de Uarini, tambaqui de banda, engov.

Pena que Nina não pode ir. Tenho certeza de que ela amaria ver o encontro dos rios ou, ao menos, latir para um rio.

Em sua ausência, latirei eu.

Latirei por vontade de latir, mesmo achando rio uma coisa linda.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho