Primeiro de maio deveria ser, e talvez seja, o dia mundial do trabalhador e o dia da Literatura Brasileira. É o dia em que a vacina contra poliomielite foi disponibilizada ao público (1956) e a data que Fidel Castro proclamou Cuba como nação socialista (1961). Foi também quando recebi fotografias atualizadas de um amigo alcóolatra que está morrendo. O amigo é importante. E eu não sei o que fazer.
Penso em quanto o trabalho foi importante para ele. No quanto o seu fazer, artístico, foi a força motriz de sua vida. E penso nessas conexões estranhas que a vida nos dá. Ou, pelo menos, que o meu cérebro me fornece.
Minha cabeça é a personificação daquele meme das várias abas abertas sem saber de onde vem a música.
Por motivos óbvios, penso na minha morte. Já orientei meu filho sobre isso. Não o acusem, jamais, de frieza ou distanciamento. Ele estará, espero, sendo fiel ao que lhe pedi. Espero que ele me creme por procuração ou contrato.
Eu pedi: não vá lá. Doe o que ainda prestar. É matéria, é carne, que sirva para alguém. Mande queimar o resto. Se for legalmente possível, nem apareça no local. Quero que vá a algum lugar que eu goste, chame meus amigos e faça um brinde em meu nome com eles. E vá embora. Se eu tiver animais domésticos, por favor, os adote. Cuide dos vivos, venda o que sobrar. E que siga sua vida. Eu vivi a minha.
Ele será chamado de insensível por atender aos meus pedidos. O protejam.
Volto ao amigo. Recebo, agradecida, via família, fotos recentes, por ocasião de seu aniversário. Vejo aqueles olhos de peixe na fotografia. Ele está, mas não está lá. Eu lembrei da data. Lembrei o dia inteiro. E escolhi não ligar. Existem, claro, datas que eu esqueço ou que me lembro, mas não dou conta. Nesse caso, não. Eu lembrei, eu tinha tempo, eu podia, e preferi não. O Bartleby em mim saúda o Bartleby em você.
Não pela minha biografia, mas por causa de pessoas que me foram importantes, me é impossível não fazer a ponte entre o dia do trabalho e o “trabalho” em Umbanda e Quimbanda.
Minha melhor amiga e eu assistimos a uma cerimônia de Umbanda. Ela me perguntou umas quinhentas coisas. A resposta sempre foi sincera e rigorosamente igual: “não faço a menor ideia”. Estávamos lá por conta de um relacionamento meu. Ela era o apoio emocional pelo qual, aliás, eu sou muito grata. Ainda assim, tudo o que eu não tinha eram respostas.
História da minha vida. Nunca tenho respostas. Acho que é por isso que me tornei professora. Professora, do tipo que presta pelo menos, ensina a perguntar, não a responder.
A parte mais difícil da docência é lembrar como é não saber. Uma vez que a gente aprende algo, aquele conteúdo é “interiorizado” e temos muita dificuldade em deixar de saber. Ser professora é ter a capacidade ir e vir entre a ignorância e a ciência. Todo o resto é supérfluo. É adjacente. Tangencial, quase.
O que me leva, de novo, ao trabalho. A docência é um dos meus muitos trabalhos. Tenho muitos defeitos. Muitos, mesmo. Você precisaria contratar um profissional de biblioteconomia para dar conta dessa catalogação. Entretanto, um que eu não tenho é a mesmice.
Nunca consegui seguir uma única carreira. Me recusei a escolher. Sou isso e aquilo. Sim. E aquele outro mais. A vida é heterogênea, múltipla e interessante. Me recuso a escolher uma única estrada.
As pessoas, idem. Não me pareço em nada com as pessoas com quem convivo. Isso fala bem delas e de mim.
Talvez seja esse o legado principal da literatura: a noção, por meio da alteridade, de que somos múltiplos, muitos, complexos e, talvez, malucos.
E agora, um dos meus muitos trabalhos, passeadora de cachorro, me chama. Fui, beijos.