Luz de outono no céu

A despedida de um avô afetuoso com o conforto de que maio é um mês bonito para morrer
Ilustração: FP Rodrigues
02/05/2025

Nunca entendi por que me levaram para aquela sala. Por que razão vieram me buscar, me tiraram de onde eu estava, só eu e mais ninguém. Lembro bem de ser chamada por uma das minhas tias no fim daquela manhã de terça-feira, de ser conduzida por ela e minha mãe por um corredor a uma pequena sala onde sentamos em torno de uma mesa e aguardamos em silêncio. Me buscaram as duas no enorme saguão barulhento, movimentado, repleto de cadeiras emborrachas e me deslocaram para um ambiente apertado, todo em variações de bege, inclusive os móveis descasados, sob um silêncio que pesava nos meus ombros.

Pouco tempo depois entrou o dr. Marcelo, um homem da minha idade, talvez um pouco menos, ali pelos seus 40. Entrou, deu boa tarde estendendo a mão para me cumprimentar e sentou do outro lado da mesa redonda. Percebi quando as duas fizeram um sinal como se dissessem “pode começar” e então ele começou a me explicar procurando as palavras e formando as frases em marcha lenta com uma calma que me deixou inquieta. E eu poderia ter interrompido aquele monólogo ao fim das primeiras frases quando ele tomou fôlego para me dizer pela terceira ou quarta vez o que havia acabado de explicar com outras palavras, se repetindo porque, hoje compreendo, a expressão do meu rosto me denunciava, deixando claro para ele que eu não tinha acatado, ele não tinha sido capaz de me convencer, de me persuadir. Aguardei que ele respirasse e seguisse me explicando de uma outra maneira que não tinha mais jeito e, por essa razão, o melhor a fazer seria deixá-lo o mais confortável possível. Mas eu insisti, como fariam isso, qual seria o remédio, o que ele sentiria, quanto tempo duraria, listei alternativas que me pareciam fazer todo sentido, mas e se, até que minha tia pousou a mão em cima da minha, me olhou com aqueles olhos transparentes dela e me disse: acabou.

Minha mãe levantou compenetrada em se manter firme e saiu da sala seguida pelo geriatra que me estendeu a mão e sorriu o sorriso mais triste que eu já tinha visto. Atravessei a sala de espera sem reparar o que mostrava a tela da tevê e saí pelo hospital. Passei por uma parede de vidro enorme e segurei o passo. Lá fora, um dia daqueles que só em maio a gente vê: o céu azul celeste ampliado pela luz de outono. Tive um calafrio e fiquei assim olhando o dia lá fora. Entendi que o mês de maio não seria mais o mesmo, que aquela luz única já perdera o encanto, eu não contaria mais os dias para a chegada daquela estação, não seria arrebatada pelo céu todas as manhãs. O outono chegaria, ano após ano, talvez ele fosse inclusive o mesmo de sempre, mas eu seria incapaz de alcançar todo o seu esplendor.

Pedi para entrar sozinha no quarto onde meu avô descansava. Sentei ao seu lado e coloquei as minhas mãos sobre as dele. Ele abriu os olhos e sorriu. Aquele sorriso doce e levado que me acompanhara a vida inteira. Impossibilitado de falar, agora cabia a mim a contação de histórias. Contei gracinhas dos bisnetos e ele riu com gosto. Ele não falava e ainda assim eu entendia tudo o que me dizia. Falei das férias com ele na casa de Poços, da coruja de louça cujos olhos acendiam à noite, da contação de histórias ininterrupta no escritório, quais eram as minhas preferidas: As doze princesas e O lago das pedras preciosas. Ele fazia que sim com a cabeça. E para não o cansar demais me inclinei sobre ele para abraçá-lo sabendo: aquele poderia ser o nosso último abraço. Agarrada a ele, disse algumas coisas perto do ouvido e então me esforcei para não chorar ao dizer que nosso combinado da vida inteira estava de pé. Sorrimos.

Lá fora, confrontada pela luz daquela manhã, pensei: “maio é um mês bonito para morrer”.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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