Karina com K

Uma mulher, cujo rosto é uma crosta de argamassa, decide furar a fila e se transforma naquele tipo de pessoa “de quem se desgosta antes de conhecer”
Ilustração: José Lucas Queiroz
01/05/2025

Uma mulher com muita maquiagem e muitas bolsas entra na minha frente na fila do Starbucks. Não ligo. Ainda estou pensando o que quero. Sou lenta, pode furar a fila, minha filha, tudo bem. Ela pergunta qual dos refreshners sai mais. Eu gosto que a caixa também levou um certo tempo para entender a pergunta. Não sou eu a burra.

Todos vendem bem, senhora. Ela parece precisar do emprego. Pobre moça.

A furadora de fila, pelo visto, decide o que quer em função da popularidade de sua escolha.

A caixa continua. Frutas vermelhas, pitaia…

Pitaia é doce?

Sim, senhora, pitaia é doce.

Fico me perguntando que diferença faz, considerando a quantidade de açúcar que colocam na bebida. A caixa também não entende.

Então eu quero um de pitaia.

Qual o tamanho, senhora?

Quanto custa?

Tem de 12, 14 e 16.

Me vê um de 14. É no Pix.

Seu nome, senhora?

Karina com K.

Vou começar a responder às pessoas Nina com I; Cachorro com ch; Carolina com A. Não tenho nenhuma obrigação de explicitar a primeira letra.

A ABNT não se posicionou até a publicação dessa crônica.

A Karina com K então ergue suas compras. Bolsas de marcas da moda. Uma delas eu reconheço, é maquiagem. A moça é obviamente consumidora assídua, a julgar pelas muitas camadas de argamassa em seu rosto. Os olhos impecavelmente delineados. A boca brilhante. Cílios que poderiam ferir alguém. Não se vê um único poro na pele da Karina com K. É uma pessoa sem defeitos. Eu, ao contrário, tenho muitos. Um deles é odiar a Karina com K sem ao menos conhecê-la. É toda uma categoria de pessoas. “Pessoas que eu não preciso conhecer para não gostar.” Recuso a ideia de desgostar de uma comida sem provar. Ou de falar mal de um escritor antes de uma leitura sincera. Estou plenamente ciente da incoerência. Quem faz sentido é soldado, dane-se.

Eu teria totalmente esquecido sobre Karina com K se ela não tivesse tirado uma selfie do meu lado, na fila do caixa. Seria apenas mais uma pessoa com valores muito diferentes dos meus, sem drama. São muitos. Talvez a maioria no planeta. Tenho certeza de que saí na sua selfie. E que estarei publicada em alguma rede social aleatória como pano de fundo de uma iniciativa para angariar fundos a partir do consumo de uma bebida popular, já que foi esse o critério de seleção.

Depois de todo o processo, bebida que mais sai, preço, pix, etc., Karina com K se lembra, por um breve momento, que outras pessoas existem e se dá conta de que furou a fila.

Ah, você já estava aqui, né? É que estou com pressa.

Sabe… Eu sou uma pessoa distraída. Um “pô, foi mal, desculpe” seria suficiente. Dizer que está com pressa é assumir a desconsideração. Colega, eu quero que você e sua pressa se fodam.

Há uma coincidência grande entre as categorias “pessoas sem noção” e “pessoas de quem desgosto antes de conhecer”. Diria que algo na grandeza de 99%.

E aí, cá estou eu, dias depois, olhando para o processador de texto e desejando o fracasso arrebatador às iniciativas capitalistas do perfil social da Karina com K. Lembro do salário de professor, da luta do escritor, do fracasso do artista. Não tem muito que se possa fazer além de lembrar do Quintana e pensar que, tudo bem, ela passará, eu passarinho.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho